Série Amazônia
Covid-19: ribeirinhos e a dificuldade para acessar serviço de saúde
Após se espalhar na capital amazonense, o novo coronavírus alcançou a Zona Rural, onde vive a maior parte dos ribeirinhos do Amazonas. Em uma realidade onde distâncias se medem em dias, a doença fez ainda mais vítimas
Manaus - Com o primeiro caso
de coronavírus confirmado no Amazonas, em março de 2020, o ‘raio de tensão’ que
cobria Manaus se estendeu para as comunidades ribeirinhas de todo o território
do estado. De repente, para elas, qualquer bote que encostava na beira poderia trazer
consigo a nova doença sem cura, que ouviam falar apenas no rádio ou televisão.
O medo maior nem era o de se contaminar, porque iriam. Mas sim, como seria o
atendimento médico, já que, no mapa amazônico, as distâncias são medidas por
dias.
Essas
dúvidas ecoaram na mente de Luís Barbosa da Costa, presidente da comunidade do
Abelha (mais de mil habitantes), na região metropolitana de Manaus.

"Vocês
já viram as dificuldades que vocês tiveram de [enfrentar ao] vir de lá de onde
vocês deixaram a lancha [para chegar até aqui no centro da comunidade]. Esse
mesmo trajeto a gente faz para ir ao médico", ele se refere ao percurso que
a reportagem fez para alcançá-lo.
De Manaus para a comunidade do Abelha, foram cerca de 30 minutos de barco. O custo por pessoa é de R$ 9. Ao chegar na beira do povoado, ainda tivemos de pagar um moto-taxi que custou R$ 15 e nos deixou, após 10 minutos, na casa de Luís. A partir do porto da comunidade, o mesmo percurso, mas a pé, dura 40 minutos, segundo os moradores.

"Com
essa pandemia, a gente teve muitas perdas também. Amigos, pessoas muito
conhecidas da gente aqui que morreram com esse problema da pandemia. A gente
sentiu muitos sintomas, inclusive acredito que muita gente aqui já teve [a
doença, mas] daquele jeito, né. Tem, mas não agrava para ir ao hospital. Nós,
[eu e minha esposa] chegamos a ter o coronavírus", conta Luís.
Embora
esteja no grupo de risco, ele e sua família se recuperaram bem da doença, se
tratando em casa.
A condição da comunidade do Abelha, onde vivem, também não ajuda. O povoado não possui posto de saúde, policial, ou sequer saneamento básico. O acesso à água potável se dá através de poços artesianos, mas só para quem tem condições de pagar.

Dificuldade para atendimento médico
Na
mesma comunidade, mas a 15 minutos de distância da beira do rio, mora Patrícia
Raiane, dona de casa e mãe de três filhos. Na casinha de madeira no meio da
mata abafada, ela diz ter ficado sabendo da pandemia por causa das notícias na
televisão.
"Eu tenho um filho de cinco anos que tem problema asmático. Além dele, tem aqui meu sogro e minha sogra que são idosos, e eles também fazem parte do grupo de risco. Aí na época [que ouvi falar sobre a pandemia] eu não estava grávida, e a gente ficou muito preocupado por causa deles", conta ela.

E a
preocupação não é sem razão. Para receber atendimento médico, Fabrícia Silva ou
qualquer familiar devem pagar R$ 4 para ir até a comunidade Nossa Senhora de
Fátima, na região, onde há um posto de saúde. Lá, são atendidos casos mais
leves da doença. Os de média e alta complexidade, só em Manaus. Para a capital,
o custo é R$ 9 e só há lancha durante o dia. Se o quadro piorar à noite, só
usando um bote particular. Se não tiver, fica sem socorro.
"Chegou aqui na comunidade a doença, e algumas pessoas 'ficaram contraídas'. Na verdade, a gente não sabe nem dizer quantas pessoas, ou se a gente foi contaminada, porque aqui não chegou para a gente o teste rápido. A gente ficou doente, gripado, teve sintomas, falta de ar, de olfato e paladar, mas não sabemos dizer se era Covid-19 porque não fizemos exame", comenta Fabrícia.

Da chegada nas comunidades
Do
interior da China, o coronavírus viajou de avião e barco até chegar na zona
rural do Amazonas, onde vivem os ribeirinhos. Não se sabe exatamente como a
doença encontrou essas populações, mas relatos dão conta de que o turismo foi o
principal meio para a contaminação.
"Nós não tivemos isolamento social nas comunidades e sofremos também um pouco por causa da população urbana que adentrou nas cidades, já que a praia da Ponta Negra [em Manaus] fechou, que é o lazer da capital e a Praia da Lua também fechou (todas por conta do decreto governamental de pôr fim às atividades não essenciais). Aí a população [da cidade] procurou se valer das comunidades próximas que têm as praias que muita gente conhece, [trazendo o vírus consigo]", explica José Carlos. Ele é morador da comunidade do Livramento, na região metropolitana de Manaus, onde trabalha na fiscalização das praias que se localizam naquela região.

Além
disso, outra hipótese para a chegada da Covid-19 nas comunidades ribeirinhas é
a própria necessidade de ir e vir a Manaus muitas vezes. Tanto na comunidade do
Abelha, como na do Livramento, ambas visitadas pela reportagem, não há uma
forma de gerar renda estável para os moradores. Assim, os que querem melhorar
de vida, precisam buscar trabalho na capital.
"Meu marido trabalha em Manaus, na Marina do Davi. Ele é pintor e marceneiro lá. Só ele que trabalha e dá par a gente se manter com um pouquinho para a taberna e o restante para as compras. A gente vai pegando [fiado] no mercado, e quando vê já dá R$ 300. É muita luta, mas a gente vive pescando, soltando malhadeira, tarrafa. Divide com os vizinhos necessitados", comenta Clarinda, uma moradora da comunidade do Abelha que estava no porto do povoado, de saída para receber atendimento médico em outra comunidade. Ela não informou sobrenome e idade.

Dados
No
Amazonas, dados oficiais mostram que o coronavírus atinge mais o interior,
justamente onde vivem os ribeirinhos, estes com menos acesso aos serviços
básicos, como saúde.
Segundo
a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS-AM), até a quarta-feira (4), havia
99.307 casos da doença no interior, contra 64.092 na capital, Manaus. As mortes
eram 2.913 na principal cidade do Estado, contra 1.675 registradas oficialmente
nos outros 61 municípios.
Barreiras de água e floresta
O
Amazonas é o maior estado do Brasil em extensão territorial. Segundo o
Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) o Estado possui 4,144 milhões de
habitantes. Destes, mais da metade (52%) estão em Manaus. O restante da
população está disperso em 61 municípios do interior, estes divididos por verdadeiras
barreiras aquáticas, os rios, e de árvores, as florestas. Toda essa geografia
dificulta qualquer tipo de locomoção.
“Trata-se de um Estado que tem uma dinâmica geográfica muito dilatada. Nós não temos uma rede expressiva de estradas para ligar as cidades. Tudo é concentrado na metrópole Manaus, como pouco mais da metade da população, a maior parte dos recursos e outras questões. Então temos o Estado agigantado e, ao mesmo tempo, concentrado na sua metrópole”, define Marcos Castro, PhD em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP).

Apesar
das dificuldades no transporte, o profissional garante que a geografia do Amazonas
permite a implantação e manutenção de atendimentos de alta complexidade,
evitando que todos precisem buscar esse socorro em Manaus. O que falta, segundo
ele, são investimentos.
"Esse vírus se espalha de maneira democrática, porque atinge a todos. Já o atendimento médico para ele, em um estado como o nosso, é muito difícil. Você imagina os indígenas vivendo aí nas comunidades distantes dos centros urbanos, ou até mesmo os ribeirinhos. Todos sofrem com esse problema estrutural da locomoção", comenta o especialista.

Ajuda para os povos da Amazônia
Durante a pandemia da Covid-19, organizações não governamentais fizeram doações de máscaras, álcool em gel e outros produtos em algumas comunidades ribeirinhas, segundo os próprios moradores. Uma dessas ONGs, a Salvar, doou mais de 1 mil filtros de água para a comunidade do Abelha, que sofre com a falta de saneamento básico.

Já o
governo do Estado, por meio da Secretaria de Estado da Assistência Social
(Seas), informou, para esta reportagem, ter realizado ações em apoio aos
ribeirinhos.
"Na
pandemia, o Governo do Amazonas, por meio da Seas, apoiou 50 mil pessoas por
meio do Programa Apoio Cidadão, sendo 25 mil em Manaus e 25 mil no interior do
Estado. Por meio de cartão magnético, as famílias em situação de
vulnerabilidade social tiveram acesso a três parcelas de R$ 200,00
correspondentes aos meses de abril, maio e junho, que possibilitaram a aquisição
de produtos da cesta básica e itens de higiene pessoal e limpeza no comércio
local".
A Seas não informou quais comunidades receberam os benefícios citados acima, assim como não concedeu entrevista por meio de um porta-voz para ajudar a entender como a Covid-19 chegou até os ribeirinhos.
Assista ao vídeo da reportagem:
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