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Ditadura militar

Golpe militar, 60 anos: Pastores evangélicos foram perseguidos e torturados pela ditadura

Entre as vítimas do regime estavam pastores, líderes de juventudes cristãs, estudantes de teologia e membros de diversas denominações

“Os choques me provocavam convulsões e gritos. A sensação era de perda total de controle sobre minha capacidade mental, racional, e sobre os meus movimentos. Era insuportável!”

Foi assim que Anivaldo Padilha, líder ecumênico metodista, descreveu as torturas que sofreu durante os 21 dias em que ficou preso em São Paulo no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), uma agência de repressão política subordinada ao Exército durante a ditadura militar iniciada em 1964.

Padilha foi um dos líderes religiosos evangélicos perseguidos pelo regime no Brasil. Ele foi acusado de “infiltração comunista” na Igreja Metodista, segundo seus próprios relatos, e passou, ao todo, 11 meses detido.

Pai do atual ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), ele foi delatado, no início da década de 1970, pelo pastor e pelo bispo da igreja da qual fazia parte.

Na época, ocupava o cargo de diretor do Departamento Nacional de Juventude da Igreja Metodista e era editor de uma revista da igreja dirigida a esse público.

Fez parte desde a sua juventude da Ação Popular, uma organização criada por militantes da juventude católica que se expandiu para um caráter não confessional e defendia o conceito-chave do “socialismo como humanismo”.

Além das suspeitas de infiltração comunista, ele entrou na mira do regime por auxiliar na proteção de perseguidos políticos que buscavam o exílio e informar às redes ecumênicas internacionais sobre o que acontecia nas prisões da ditadura brasileira.

“Forçaram-me a tirar minha roupa e me colocaram na ‘cadeira do dragão’. Uma cadeira revestida com folhas de metal conectadas por um fio a um rádio militar de campanha”, contou Padilha sobre as torturas que sofreu na prisão em depoimento realizado para Procuradoria da República e Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em 2011.

“Fui colocado nu no assento com minhas mãos e pés amarrados. Exigiram que eu desse todas as informações que eu possuía. A cada negativa, o torturador girava a manivela do telefone para aumentar a intensidade dos choques.”

Padilha foi solto e se exilou no Uruguai, Suíça e Estados Unidos, tendo retornado ao Brasil somente após a Lei de Anistia, em 1979. Por seu tempo fora, só conheceu o filho Alexandre aos 8 anos.

O ministro relembrou a experiência de sua família com a perseguição ao pai em um ato pró-democracia em 2014.

“Muito cedo tive que aprender o que era a ditadura para entender porque eu e minha mãe mudávamos de casa e não tínhamos residência fixa até meus 4 anos. Só falava com meu pai por carta ou por fita cassete”, contou.

Anivaldo Padilha não foi o único integrante de uma igreja evangélica denunciado por membros da própria comunidade.

Segundo os relatórios elaborados pela Comissão Nacional da Verdade após anos de investigações sobre as violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, boa parte das lideranças evangélicas se alinharam ao governo de exceção depois da tomada do poder há 60 anos.

Com isso, pastores e membros das congregações que teciam críticas à ditadura, faziam parte de organizações de oposição ou mantinham posições consideradas nocivas para a segurança nacional naquele momento foram perseguidos e tiveram que atuar na clandestinidade.

Os denunciados ao regime foram acusados de subversão, forçados ao exílio, torturados e, em alguns casos, ficaram desaparecidos.

Muitos também sofreram processos eclesiásticos e foram até excluídos de suas igrejas. Concílios inteiros e unidades administrativas locais também foram dissolvidas.

Anivaldo Padilha (no centro) ao lado do filho e demais membros da família em foto de 2013 Foto: Arquivo/Igreja Metodista

Entre as vítimas evangélicas, estavam principalmente aqueles que pregavam uma renovação nas ideias tradicionais defendidas por esse segmento cristão desde o século 19, em especial o fundamentalismo bíblico, o puritanismo e um isolamento das coisas consideradas mais mundanas, como a política.

Em vez disso, essas lideranças pregavam a responsabilidade das igrejas diante de mudanças políticas e a luta por justiça social.

Os movimentos ecumênico, que defende a unidade de diferentes igrejas e comunidades cristãs, e de juventude evangélica tiveram forte papel na pressão por mudanças.

“Essa forte aproximação com a Igreja Católica era rejeitada pelos mais conservadores”, afirma Alderi Souza, pastor presbiteriano e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

O historiador e teólogo explica que, ao mesmo tempo, também havia grande preocupação do comando em relação a uma corrente que crescia: o liberalismo teológico.

“Quem apoiava essas ideias acreditava na ênfase na teologia que já não priorizava mais a evangelização no sentido clássico, ou a espiritualidade e a teologia no sentido tradicional, mas sim o envolvimento político social”, diz Souza.

Do mundo para as igrejas
Não foi apenas a pressão por mudanças internas que incomodou. A cisão interna que atingiu as igrejas evangélicas no Brasil foi um reflexo das convulsões experimentadas pela sociedade brasileira como um todo em meados do século 20, explica o historiador.

O momento era de extrema polarização, com um contexto internacional também agitado.

Enquanto o Muro de Berlim marcava a tensão geopolítica entre a União Soviética e os Estados Unidos e seus respectivos aliados, internamente, João Goulart sofria uma forte resistência conservadora contra seu governo.

Antes mesmo do golpe em 1964, as reações antagônicas aos ideais que cresciam na época e o movimento contra a chamada “ameaça vermelha” do comunismo também tiveram impacto nas igrejas.

Houve uma cisão de posições ideológicas dentro das igrejas como estava acontecendo na sociedade brasileira, diz Souza.

“Enquanto alguns indivíduos estavam alarmados com aquilo que entendiam como a ascensão da esquerda e o risco iminente da tomada do poder pelos comunistas, outros estavam empolgados com as novas ideias que surgiam e defendiam até mesmo soluções mais radicais, como a luta armada para tomada do poder.”

Na cúpula da maioria das igrejas evangélicas, predominou a primeira posição, segundo o historiador.

Tanques em frente ao Palácio das Laranjeiras, durante o golpe militar que levou à derrubada do presidente João Goulart Foto: Getty Images

Dois anos após a tomada do poder pelos militares, a Igreja Presbiteriana do Brasil elegeu o pastor Boanerges Ribeiro, que defendia uma posição conservadora, para presidir o Supremo Concílio, que manteria sua influência por quase 20 anos.

Movimentos semelhantes aconteceram em outras denominações protestantes, entre elas a batista e a metodista.

Não demorou muito para que essas lideranças entrassem em conflito direto com os pastores e membros da comunidade que defendiam ideias opostas àquelas pregadas pelo regime militar.

Segundo Raimundo Barreto, pastor batista, historiador e professor da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, muitos integrantes foram influenciados “pelas discussões em torno do marxismo e das promessas não cumpridas do desenvolvimento capitalista de melhores condições de vida”.

“Muito desse movimento aconteceu às margens das igrejas protestantes, porque o mundo do protestantismo brasileiro sempre foi conservador e influenciado por movimentos missionários americanos mais individualistas cuja maior preocupação era a conversão.”

Comissão Nacional da Verdade investigou abusos e a violação de direitos humanos cometidos na ditadura Foto: Arquivo/Nacional

Em um de seus relatórios, a Comissão da Verdade aponta como “protestantes com engajamento social, especialmente, aqueles vinculados ao movimento ecumênico, eram identificados pelos agentes do sistema como inimigos da nação”.

O comitê aponta como uma das provas de tal perseguição um documento elaborado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), o órgão de coleta de informações e de inteligência do regime militar, de 30 de outubro de 1980.

O texto afirma que grupos religiosos evangélicos procuravam “influir na política governamental nos diversos campos do poder nacional, através de educação e doutrinação das massas, visando a consecução de seus objetivos políticos”.

O colegiado que investigou as violações ocorridas durante os anos de autoritarismo afirma ainda que os agentes da repressão denominavam “progressistas” tanto católicos quanto protestantes, por conta de ações consideradas “contestação ao regime vigente e às autoridades constituídas”.

Em 1964, ano do golpe que deu início ao regime militar, as igrejas evangélicas passavam por um momento de expansão.

O protestantismo chegou ao Brasil no início dos anos 1900, mas foi apenas a partir dos anos 1960 que um crescimento substantivo pôde ser notado, especialmente com o aparecimento das igrejas neopentecostais a partir dos anos 1970

Na década de 1960, segundo dados do censo, cerca de 4,3% da população se declarava evangélica – uma parcela pequena se comparada aos 23% registrados em 2010.

Em contrapartida, mais de 90% da população se declarava católica daquele momento.

Mas, assim como as igrejas evangélicas, as lideranças católicas também desempenharam papéis contraditórios durante a ditadura militar no Brasil.

Por um lado, parte da cúpula da Igreja Católica apoiou os militares. Por outro, muitas lideranças e fiéis católicos foram personagens importantes na resistência e foram perseguidos por isso.

Outro grupo religioso que entrou na mira dos militares foram as Testemunhas de Jeová, por se absterem de qualquer participação política e recusarem o alistamento militar e a idolatria a símbolos nacionais.

‘Pastor por conveniência’
Assim como Anivaldo Padilha, Zwinglio Dias, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), também foi preso, no DOI-Codi no Rio de Janeiro, onde sofreu tortura psicológica.

Ele era membro do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), que promovia reuniões em que havia a troca de informações sobre os colegas que estavam sendo perseguidos.

Foi preso em 1971 e contou que, embora não tenha sido submetido às torturas físicas, foi bastante ameaçado, assistindo pessoas serem torturadas na sua frente.

Em Memórias Ecumênicas Protestantes, livro publicado em 2014, ele afirma ter sido investigado pela igreja por ser um “ateu por convicção, político por profissão, e pastor por conveniência” antes mesmo de ser ordenado pastor, quando ainda era licenciado.

Já o pastor presbiteriano Leonildo Silveira Campos foi preso em 1969 aos 21 anos, quando ainda era seminarista da Igreja Presbiteriana Independente.

Ele foi acusado de subversão e ficou 15 dias detido nas dependências da Operação Bandeirantes (Oban) e no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em São Paulo.

O centro de informações e investigações criado pelos militares e conhecido como Oban também é lembrado por conta do pastor batista Roberto Pontuschka, capelão do Exército que, segundo depoimentos, teria atuado também como torturador no local.

Segundo o relatório produzido pela Comissão da Verdade, Silveira Campos ainda carrega marcas de queimadura no polegar e no indicador da mão esquerda produzidas por descargas elétricas nas sessões de tortura.

Ele não se esquece do modus operandi do religioso que à noite torturava os presos e de dia visitava celas distribuindo o Novo Testamento.

“Um dia bateram na cela: ‘Quem é o seminarista que está aqui?'”, contou Silveira Campos em depoimento ao historiador Rodrigo Patto Sá Motta.

“De terno e gravata, ele se apresentou como capelão e disse que trazia uma Bíblia para eu ler para os comunistas f.d.p. e tentar converter alguém.”

O pastor batista teria então afirmado, com uma pistola apontada debaixo do paletó, segundo Silveira Campos: “Para os que desejam se converter, eu tenho a palavra de Deus. Para quem não quiser, há outras alternativas”.

Antigo centro de repressão da ditadura DOI-Codi em São Paulo Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Há relatos e registros de outros muitos religiosos evangélicos vítimas do regime e, inclusive, de mulheres que tinham relação próxima com a igreja.

Zenaide Machado de Oliveira, jovem da Igreja Presbiteriana Independente, ficou presa por 3 anos e foi torturada por 60 dias.

Ana Maria Ramos Estevão, líder de jovens da Igreja Metodista que chegou a ser integrante da Aliança de Libertação Nacional, foi presa três vezes e torturada por mais de 15 dias.

Heleny Guariba, também da Igreja Metodista, foi presa e desapareceu em 1971.

Outros nomes citados com frequência são o de Jether Ramalho, membro da Confederação Evangélica (CEB) do Brasil nos anos 1950, Dorival Beulke, pastor da Igreja Metodista, e Weber Fernandes Ferrer, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil.

O escritor Rubem Alves, que foi pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, também foi acusado, junto com outros membros, de pecados como comunismo e desprezo pela doutrina protestante nos tribunais da igreja.

Ele entrou para a lista dos vigiados da ditadura e em 1965 optou pelo autoexílio com a família.

Muitos dos ativistas do movimento ecumênico que se envolveram na organização da Conferência do Nordeste, um evento que reuniu pastores, reverendos e fiéis de pelo menos 20 Estados em Recife em 1962 para debater a responsabilidade das igrejas diante das mudanças políticas e sociais, também foram vítimas de perseguição anos depois.

O pastor e sociólogo Waldo César, falecido em 2007, foi preso pelo regime militar por uma semana em 1966 e, algum tempo depois, se exilou.

Heleny Guariba, da Igreja Metodista, foi presa e desapareceu em 1971 Foto: Comissão da Verdade

Muitos dos religiosos expulsos de suas congregações se refugiaram em universidades para lecionar teologia e outros campos de estudo. Outros fundaram novas igrejas.

É o caso da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, no Espírito Santo, criada em 1979 por pastores que sofreram perseguição por sua visão ecumênica, defesa do ministério feminino e oposição ao regime.

Resistência e documentação
Lideranças religiosas também desempenharam um papel importante nos esforços de preservação e recolhimento de documentos sobre os crimes cometidos nesta época no Brasil.

Entre os evangélicos, se destaca o nome do pastor Jaime Wright, irmão de Paulo Stuart Wright, ex-deputado estadual por Santa Catarina e dirigente nacional da Ação Popular (AP), que desapareceu durante o regime militar, em 1973.

Chefe da Missão Presbiteriana do Brasil Central, em São Paulo, Jaime Wright representou uma importante força de resistência ao regime, denunciando as violações de direitos humanos ocorridas no Brasil para colegas no exterior.

“Com a prisão do meu tio, muitos colegas pastores presbiterianos do meu pai viraram as costas para ele e o acusaram de ser irmão de um comunista, de um subversivo”, relata Anita Wright, filha de Jaime, à BBC News Brasil.

Segundo a presbítera da Igreja Presbiteriana Unida, foi durante as buscas por informações sobre o paradeiro do irmão que seu pai passou a trabalhar lado a lado com Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo, pela causa dos direitos humanos.

“Todos tinham muito medo de que houvesse um sumiço, uma queima de arquivo, do material da repressão. Por isso eles elaboraram uma estratégia para conseguir copiar todos os processos de prisão e tortura”, conta.

Arns, Wright e outros ativistas alugaram uma sala com uma máquina copiadora para onde advogados comprometidos com a causa levavam os arquivos que seriam xerocados. “Os advogados tinha direito de retirar os processos do Superior Tribunal Militar por algumas horas e corriam para copiá-los antes de serem devolvidos”, diz Anita Wright.

Foto recuperada pelo projeto ‘Brasil: Nunca Mais’ de movimento sindicalista no 1º de maio de 1968 na praça da Sé em São Paulo Foto: BR UNICAMP IFCH/AEL BNM

“Se meu pai teve medo [da repressão] em algum momento, ele não demonstrou”, relata. “Ele mantinha seu trabalho de forma reservada, até como uma forma de proteção para a família.”

Os documentos reunidos deram origem ao projeto Brasil: Nunca Mais, que resultou na publicação de um livro que é um inventário sobre a tortura no Brasil durante os 21 anos de ditadura.

“Só ficamos sabendo da grandeza do projeto depois que tudo acabou.”

Ao lado de Dom Evaristo Arns e do rabino Henry Sobel, Jaime Wright também conduziu em 1975 o culto em memória a Vladimir Herzog, jornalista assassinado pela ditadura militar e que se tornou símbolo da luta a favor da democracia.

“Foi um momento muito marcante porque houve uma grande mobilização dos militares para impedir que o evento acontecesse. Me lembro que foram feitas barreiras na [Avenida] 23 de Maio e meu pai quase não conseguiu chegar a tempo da celebração”, diz Anita.

Diferente de Herzog, o corpo do tio da presbítera, Paulo Stuart Wright, nunca foi encontrado. Há suspeitas de que ele tenha sido morto sob tortura após ser preso no DOI-Codi de São Paulo.

*Com informações do site BBC Brasil

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