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Artigo

Vida de professor e o rio da desventura

Nas margens do Rio Negro, onde a névoa matinal se confunde com o sopro da floresta, o professor Manuelzinho acorda antes do alvorecer. O relógio de parede, herança do avô, marca quatro horas, mas o tempo, naquele canto do Amazonas, é medida relativa: conta-se em remos quebrados, em horas de viagem sob sol inclemente, em salários que não chegam.

A esposa, Juventina, dorme com os dois filhos enlaçados ao corpo magro, como se os protegesse até do sonho. Manuelzinho observa-os, e um nó de culpa aperta-lhe a garganta — culpa de pai que não sabe se amanhã trará o suficiente, culpa de marido cujas promessas se dissolvem em suor.

Veste-se em silêncio, calça botas surradas, engole um café frio. A canoa espera, balouçando na água escura. São três horas de remo até a escola ribeirinha, tempo que ele usa para ensaiar lições ou, nos dias mais amargos, para calcular contas que não fecham.

O governo promete riquezas ao final da carreira, mas Manuelzinho, apaixonado por matemática, sabe que 50% de quase nada é ainda menos. “A vida do professor”, murmura, “é equação sem solução: soma-se esforço, subtrai-se dignidade, multiplica-se desespero”.

Ponte para além do rio

A floresta, imóvel, ouve e acompanha o drama do professor. Jaçanãs levantam voo, e ele pensa nos colegas que partiram — uns para cidades grandes, outros para o comércio, um até para guiar turistas na Região Metropolitana da capital do Amazonas.

Ele lembra, por exemplo, de sua grande amiga Rozete, que trocara quadros-negros por telas de computador. “Quem dera eu tivesse tal escolha”, suspira, remando contra a correnteza. Juventina sugerira, na véspera, que ele também desistisse. “Vire boteiro, venda peixe, qualquer coisa”. Mas Manuelzinho, teimoso como as raízes da samaumeira, resistia. Alunos o esperavam, crianças de olhos brilhantes que viam nele a ponte para um mundo além do rio.

Eis que o mestre chega à escola — quatro paredes de madeira podre, telhado esburacado. Enquanto arruma as carteiras, recorda-se do discurso do coordenador Venâncio Torres: “Experiência não se paga, conhecimento não se honra”.

Pois bem. Há dez anos, seu salário inicial comprava dois sacos de farinha. Hoje, compra um e meio. A inflação, astuta, implacável, devora seu futuro. E ainda assim, quando as crianças entram, cantarolando o Hino Nacional com sotaque caboclo, Manuelzinho transforma-se. Esquece a dor nas costas, o remédio não comprado para a filha, a promessa de concurso que nunca vem.

— Professor, o senhor acha que um dia eu vou ganhar mais que meu pai? — pergunta Pedro, 12 anos, filho de um seringueiro.

Manuelzinho hesita. Machado de Assis, em seus devaneios, diria que a esperança é a última moeda do pobre. Fernando Sabino acrescentaria um sorriso malandro. Ele, porém, limita-se a ajustar os óculos embaçados pela umidade.

— Depende, Pedro. Se estudares, talvez descubras que riqueza não é só dinheiro.

Águas revoltas

Mentira piedosa. Às margens do rio, onde a geografia é destino, Manuelzinho sabe que a meritocracia é lenda urbana. À tarde, ao regressar, a canoa enfrenta uma tempestade súbita. Águas revoltas engolem o remo, e ele se agarra à embarcação, pensando na ironia final: morrer afogado em um rio que nunca o levou a lugar algum.

Chega em casa à noite, encharcado, tremendo. Juventina nada pergunta. Serve-lhe uma sopa rala, e ele a bebe em silêncio, ouvindo a respiração leve dos filhos. No escuro, enquanto a floresta sussurra segredos ancestrais, Manuelzinho contempla o teto. Talvez amanhã o sol nasça diferente. Talvez o concurso saia. Talvez o rio, cansado de injustiças, mude seu curso.

Até lá, ele rema, rema, e rema muito.

Juscelino Taketomi é jornalista, colaborador do EM TEMPO e assessor especial na Assembleia Legislativa do Amazonas

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