O debate sobre a crise da violência urbana no Brasil, e particularmente no Rio de Janeiro, não pode ser dissociado da geografia e da geopolítica das drogas na América do Sul. O Rio de Janeiro, com seus morros dominados por facções e favelas controladas pelo tráfico, representa a ponta visível de um problema que começa muito antes de o entorpecente chegar às mãos do consumidor.

Na verdade, o início dessa cadeia está nas fronteiras amazônicas, especialmente no Estado do Amazonas, que faz divisa com os maiores produtores de cocaína do mundo: Peru, Colômbia e Bolívia.

O Amazonas, por sua posição estratégica, tornou-se o principal corredor logístico do tráfico internacional de drogas. Os rios Solimões e Javari, as selvas densas e a imensa dificuldade de fiscalização fazem da região uma verdadeira “autoestrada fluvial” do narcotráfico. De lá, a cocaína segue em direção às capitais do Sudeste e do Nordeste, atravessando o país por rotas cada vez mais sofisticadas e bem estruturadas. O Rio de Janeiro, nesse contexto, é um dos destinos finais de um sistema que começa nas margens esquecidas do território brasileiro.

A ausência histórica do Estado brasileiro na faixa de fronteira é o ponto mais crítico dessa equação. Há décadas, o país negligencia a vigilância das suas fronteiras terrestres e fluviais, o que permite que o tráfico atue com ampla liberdade. O investimento em infraestrutura de defesa, tecnologia de monitoramento e integração entre forças de segurança é insuficiente e fragmentado. O resultado é uma soberania enfraquecida, em que o crime ocupa o espaço que o poder público abandona.

Essa falha estrutural tem reflexos diretos na realidade urbana. O que se vê no Rio de Janeiro é o retrato tardio daquilo que começou na Amazônia: a consolidação de territórios sob o domínio de facções criminosas. O Estado perdeu o controle sobre partes significativas de seu território, seja nas selvas amazônicas, seja nos morros cariocas. Em ambos os casos, o poder paralelo se impôs como uma espécie de autoridade alternativa, cobrando “impostos”, impondo regras e decidindo quem vive ou morre.

A favelização do Brasil, portanto, não é apenas um fenômeno social; é também uma consequência geopolítica. O abandono das periferias urbanas se soma ao abandono das fronteiras. A ausência de políticas públicas consistentes, tanto na Amazônia quanto nas metrópoles, criou as condições perfeitas para a expansão do crime organizado. O Estado não está presente com escolas, hospitais, oportunidades ou segurança, e o tráfico preenche esse vazio.

O Rio de Janeiro é o espelho dessa falência nacional. Lá, a combinação explosiva entre pobreza, desigualdade, ausência de políticas de inclusão e o fluxo constante de drogas transformou comunidades inteiras em zonas de guerra. A violência é apenas o sintoma visível de uma doença muito mais profunda, que se espalha silenciosamente a partir das margens do Amazonas e se consolida nas grandes capitais.

O problema, entretanto, deixou de ser apenas carioca. Hoje, praticamente todos os Estados brasileiros têm seu “Rio de Janeiro”. Cidades médias e capitais regionais convivem com o mesmo cenário: bairros dominados por facções, execuções diárias, tráfico de armas e ausência de Estado. O fenômeno que antes parecia restrito ao Sudeste agora se nacionalizou. O crime organizado expandiu suas redes, profissionalizou suas operações e passou a ocupar espaços institucionais, políticos e econômicos.

O tráfico não é mais apenas um problema de segurança pública; é uma questão de soberania nacional. As fronteiras desguarnecidas e as comunidades abandonadas formam o eixo de um mesmo colapso estatal. Enquanto o Amazonas continua sendo a origem das rotas e o Rio de Janeiro a vitrine das consequências, o país como um todo sofre o preço da omissão.

É preciso reconhecer que o combate ao tráfico exige mais do que operações policiais espetaculares. Ele demanda uma política de Estado, integrada e de longo prazo, que envolva desenvolvimento econômico, educação, inclusão social e controle territorial. A simples repressão, sem políticas estruturais, tem se mostrado ineficaz e, muitas vezes, contraproducente.

O Brasil precisa de um verdadeiro plano de controle e vigilância de fronteiras, com uso de tecnologia, cooperação internacional e presença permanente das Forças Armadas e das polícias federais. A Amazônia não pode continuar sendo o ponto cego da segurança nacional. Da mesma forma, as favelas não podem seguir sendo tratadas como territórios estrangeiros dentro do próprio país.

O enfrentamento do tráfico deve começar onde ele nasce, não apenas onde ele explode. O Amazonas precisa ser entendido como o front estratégico da guerra contra as drogas, e o Rio de Janeiro como o laboratório das suas consequências. Entre um e outro, está a história de um Estado que falhou em ocupar seu território e garantir a lei.

O futuro do Brasil depende da capacidade de reverter esse quadro. O país precisa se reencontrar com sua geografia e restaurar o sentido de soberania. Enquanto o Estado estiver ausente nas fronteiras e nas favelas, o crime continuará presente em todos os espaços, do interior amazônico às avenidas do Rio. O Amazonas está na origem; o Rio é apenas a ponta do problema.

Farid Mendonça Júnior

(*) Farid Mendonça Júnior é advogado, economista e administrador

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