Poucos escritores brasileiros construíram uma relação tão profunda, crítica e afetiva com sua cidade natal quanto Milton Hatoum com Manaus.
Ao longo de mais de três décadas de produção literária, o autor transformou a capital amazônica não apenas em cenário, mas em personagem central de romances que revelam tensões sociais, degradações urbanas, conflitos familiares e o lento apagamento de uma cidade que, um dia, manteve relação harmônica com a floresta e os rios que a cercam.
O recente lançamento de “A natureza como ficção” e “Dança de enganos” em Manaus não representa só um evento literário. Trata-se de um gesto político e simbólico.
Em um momento histórico marcado pela realização da COP30 no Brasil, quando o discurso ambiental voltou os olhos do mundo para a Amazônia, Hatoum reafirma uma posição que sustenta há décadas: não há preservação ambiental sem justiça social, nem floresta viva com cidades adoecidas.
Ao falar de Manaus, Hatoum insiste no pronome possessivo: “minha cidade”. Não se trata de nostalgia gratuita, mas de um vínculo identitário profundo, é claro.
A Manaus de sua infância, nos anos 1950 e 1960, era uma cidade pequena, arborizada, com igarapés acessíveis, rios como espaços de lazer e uma convivência cotidiana com a natureza. Essa cidade, segundo o escritor, foi sendo destruída a partir dos anos 1970, com um crescimento abrupto, desordenado e sem planejamento urbano.
O resultado desse processo histórico espanca os olhos hoje: ausência crônica de saneamento básico nas periferias; ocupações em áreas ambientalmente frágeis e inabitáveis; trânsito caótico e infraestrutura viária pensada apenas para automóveis; calçadas inexistentes ou tomadas por camelôs e veículos; viadutos hostis aos pedestres; ilhas de calor em uma cidade equatorial paradoxalmente sem árvores.
Hatoum não atribui esse quadro a um gestor específico, mas a décadas de abandono estrutural, de políticas públicas desconectadas da realidade amazônica e da vida concreta das pessoas.
Humanizar a cidade
Quando Hatoum fala da necessidade de “humanizar” Manaus, ele propõe algo que vai muito além da estética urbana. Humanizar, para o escritor, significa restituir à cidade sua função de espaço de convivência, de encontro, de circulação segura e digna.
Humanizar significa pensar calçadas largas e sombreadas, áreas de pedestres, limitação do tráfego de automóveis no Centro Histórico, revitalização inteligente e respeito à memória arquitetônica.
Essa visão dialoga diretamente com debates globais sobre direito à cidade, urbanismo sustentável e justiça climática, temas centrais da COP30.
Todavia, Hatoum alerta, ainda que implicitamente, para uma contradição fundamental: o mundo debate a Amazônia enquanto suas cidades permanecem invisíveis ou tratadas como problemas secundários.
Testemunho e denúncia
Nos romances “Relato de um certo Oriente”, “Dois Irmãos”, “Cinzas do Norte” e “Órfãos do Eldorado”, Manaus aparece marcada pela decadência de seu Centro Histórico, pela destruição de espaços simbólicos e pela violência silenciosa do progresso mal conduzido. Manaus se fragmenta, assim como as famílias e os afetos de seus personagens.
Em “Cinzas do Norte”, especialmente, a cidade surge como metáfora de um país que destrói sua própria memória em nome de projetos autoritários e excludentes. Já em “Dois Irmãos”, a sombra, o calor e o espaço urbano são elementos narrativos que refletem desigualdades, ressentimentos e rupturas.
Esses livros não são apenas ficção. São documentos sensíveis de um processo histórico. Hatoum escreve contra o esquecimento, insistindo que a memória é um campo de disputa e que esquecer a cidade é permitir que ela continue sendo violentada.
A realização da COP30 no Brasil reacende o discurso sobre sustentabilidade, floresta em pé e responsabilidade climática. Mas Hatoum nos obriga a perguntar: que Amazônia está sendo defendida? A floresta abstrata dos discursos internacionais ou a Amazônia concreta, urbana, onde milhões de pessoas vivem sem saneamento, sem mobilidade, sem conforto térmico e sem políticas públicas adequadas?
Ao lançar seus livros em Manaus, Hatoum sacramenta posição: não basta proteger árvores enquanto se negligenciam pessoas. Não há política ambiental séria sem enfrentar a precariedade das cidades amazônicas. A crise climática também é urbana, social e histórica.
Lutar é preciso
Quando questionado sobre por que continua escrevendo sobre Manaus, mesmo vivendo há décadas fora, Hatoum responde com simplicidade e profundidade: porque a cidade da infância é a cidade simbólica, afetiva, aquela onde nos sentimos em casa. Mas sua casa, como ele diz, foi “muito maltratada”.
Sua literatura é, portanto, um gesto de cuidado, de denúncia e de amor crítico. Hatoum não idealiza Manaus — ele a confronta. E ao fazê-lo, oferece uma das reflexões mais lúcidas sobre os impasses da urbanização na Amazônia contemporânea.
Milton Hatoum ocupa hoje um lugar raro: o de escritor que transforma memória em consciência crítica. Após a COP30, sua voz soa ainda mais necessária. Enquanto governos discursam sobre sustentabilidade, Hatoum lembra que uma cidade sem árvores, sem calçadas, sem saneamento e sem dignidade não é sustentável. Na realidade, é insustentável.
A obra de Hatoum obriga a gente a repensar Manaus não como exceção, mas como síntese de um modelo de desenvolvimento que fracassou. Ele nos lembra que preservar a Amazônia começa também por humanizar suas cidades, devolver sombra às ruas, água limpa às casas e dignidade aos seus habitantes.
Porque, no fim, como ensina Hatoum, a memória também é uma forma de resistência.

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