A passagem de Damares Alves pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), durante o governo Bolsonaro, não representou apenas uma vitória do conservadorismo evangélico no País. Mostrou como ela teria favorecido um grupo de parlamentares e entidades dirigidas por amigos, que receberam verbas do governo para supostamente atender mulheres carentes, cujos recursos foram desviados.
Pelo menos duas investigações apontaram indícios de aplicação irregular de dinheiro público por meio de ONGs que ofereciam cursos profissionalizantes a pessoas em situação de vulnerabilidade social. A mais recente apuração envolve duas entidades com sede no Rio de Janeiro, suspeitas de terem desviado pelo menos R$ 2,5 milhões dos cofres públicos.
As instituições beneficiadas, segundo relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) e investigações da PF, foram o Instituto de Desenvolvimento Social e Humano do Brasil (IDSH) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Humano (INADH).
Essas duas entidades realizaram parcerias com o Ministério da Mulher, dirigido por Damares, e somaram R$ 25,1 milhões em contratos suspeitos entre os anos de 2019 e 2021.
As ONGs prometiam realizar cursos direcionados a mulheres carentes, presidiárias e vítimas de violência doméstica, mas parte do dinheiro acabou em empresas de fachada.
Nas parcerias analisadas, foram encontrados indícios de favorecimento a empresas ligadas aos diretores que, por sua vez, tinham conexões com deputados amigos de Damares Alves, atualmente ocupando o cargo de senadora pelo Republicanos do DF. Os recursos foram repassados por meio de emendas parlamentares.
Os autores foram os deputados Otoni de Paula (MDB-RJ), Laura Carneiro (PSD-RJ) e Gelson Azevedo (PL-RJ), que não foi reeleito. Nos contratos do IDSH e do INADH, há diversas irregularidades e indícios de fraudes em licitações, com o direcionamento para beneficiar empresas ligadas aos interesses dos diretores das entidades investigadas.
No IDSH, o relatório cita ao menos dois ex-assessores do ex-deputado Professor Joziel (Republicanos-RJ) como envolvidos no esquema. Em vídeos divulgados na internet, o político aparece ao lado da então ministra, que o chama de “amigo” e “pidão”.
Empresas fantasmas
O IDSH, que é comandado por Bruno Rodrigues, tem como diretores Leandro Bastos Silva e Clayton Elias Motta, dois ex-assessores do Professor Joziel. Clayton é, inclusive, um dos donos da empresa Total Service Rio, cujo nome aparece duas vezes no relatório da CGU como envolvida nas fraudes.
Entre as irregularidades, está a contratação de empresas com sócios fantasmas ou sem capacidade técnica para realizar os serviços que haviam prometido.
Um dos casos citados envolve a empresa Globo Soluções Tecnológicas, que foi contratada pelo IDSH e pelo INADH por R$ 11,7 milhões para fornecer computadores e equipamentos de panificação, corte e costura, além de professores para ministrar os cursos prometidos pelas duas entidades.
Como funcionavam os esquemas
1) ONGs
Organizações do Rio de Janeiro e de Sergipe pediam a deputados federais auxílio para conseguir recursos, por meio de emendas parlamentares, de deputados como Otoni de Paula (MDB-RJ), Laura Carneiro (PSD-RJ) e Professor Joziel (ex-deputado federal).
2) Emendas
Em todos os casos, as emendas eram impositivas, ou seja, o governo era obrigado a executar os repasses.
3) Beneficiários
Os beneficiários e demais envolvidos tinham proximidade com a então ministra Damares Alves, da Mulher e Direitos Humanos, seja no Congresso ou na direção das entidades que recebiam as verbas.
4) Recursos
Os recursos chegavam às entidades e até eram aplicados em cursos profissionalizantes a jovens carentes, mas investigações da CGU e da PF mostraram indícios de desvios em ao menos duas entidades que receberam cerca de R$ 30 milhões cada.
5) Fraudes
As fraudes apuradas pela CGU indicam até o momento que pelo menos R$2,5 milhões foram desviados dos cofres públicos.
A CGU apurou que, em três contratos firmados com as duas entidades, a empresa receberia R$ 3,8 milhões, mas os endereços de registro da companhia, bem como as informações da Receita Federal, eram incompatíveis.
A sede da empresa é um barraco no Rio de Janeiro e sua sócia, Sara Vicente Bibiano, recebeu auxílio emergencial durante a pandemia.
Para a CGU, a empresa é um dos principais elos entre o INADH e o IDSH e, portanto, estaria por trás de todo o esquema envolvendo o desvio de recursos públicos.
Depois que a investigação da CGU foi deflagrada, o IDSH foi obrigado a devolver R$ 1,1 milhão ao governo federal, por causa das irregularidades encontradas.
O esquema nas duas entidades fluminenses é semelhante a outro já investigado pela PF, na Operação Bartimeu, que apura desvios de R$ 1,7 milhão, envolvendo uma ONG de Aracaju, que também recebeu recursos da pasta comandada por Damares, mas teria desviado a maior parte do dinheiro, promovendo contratações de serviços fraudulentos ou superfaturados.
Até o momento, ninguém foi preso em decorrência dessas suspeitas, cujos processos correm sob sigilo na Justiça Federal, em Sergipe.
A ONG sergipana é a Associação dos Jovens Aprendizes com Deficiência Visual (Ajacdevi), presidida por Mafra Meris, advogada que se apresenta como conselheira da Justiça Federal, em Aracaju. Ela também comandava um game show para adolescentes, na afiliada da TV Record, em Sergipe. Nas redes sociais, Mafra Meris posou com Damares diversas vezes.
Segundo as investigações da PF, a Ajacdevi recebeu os recursos para, supostamente, investir em ações de educação e inclusão no mercado de trabalho de adolescentes e jovens adultos, mas teria desviado todo o dinheiro recebido.
As verbas também foram repassadas por meio de emendas parlamentares, sendo uma delas de autoria da Comissão de Legislação Participativa, da Câmara dos Deputados.
As fraudes foram detectadas a partir de funcionários do próprio ministério. Damares tem dito que isso comprovaria a inocência dela. Procurada por ISTOÉ, a senadora afirmou que “não apenas tomou todas as medidas cabíveis, como se antecipou, provocando a auditoria da CGU”.
*Com informações do IstoÉ
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