Em meio a períodos de grande instabilidade financeira, municípios amazonenses têm desembolsado milhões com cachês de artistas nacionais. Os gastos podem variar a partir de R$ 100 mil e podem ultrapassar a casa de R$ 1 milhão.
Os valores exorbitantes poderiam ser empregados em investimentos para saúde, educação, infraestrutura, entre outras áreas. O alto custo traz à tona novamente o questionamento das reais prioridades dos gestores e os impactos na rotina da população.
Nas festas que aconteceram no interior do Amazonas ao longo deste ano, artistas de diferentes gêneros musicais receberam altos cachês. As apresentações, geralmente, acontecem para comemorar datas como o aniversário do município, valorizar o produto regional mais popular, entre outros motivos.
Em Maués, por exemplo, a Festa do Guaraná reuniu uma multidão para o show de Klessinha. A cantora recebeu um cachê médio de mercado, com valor que gira entre R$ 130 mil e R$ 150 mil.
O evento também contou com Natanzinho Lima, que costuma receber, em média, entre R$ 500 mil e R$ 700 mil, por show. Outra atração foi Léo Santana, cujo cachê também fica na faixa de R$ 500 mil a R$ 700 mil.
Já em Maraã, os festejos realizados em março deste ano contaram com Netto Brito, cujo cachê médio é estimado entre R$ 150 mil e R$ 260 mil. A programação incluiu também a banda Rabo de Vaca, que possui média de mercado entre R$ 250 mil e R$ 500 mil, o que levou o Ministério Público do Amazonas (MPAM) a abrir uma Ação Civil Pública para investigar a proporcionalidade dos gastos.
Cancelamentos
O órgão ministerial também recomendou à Prefeitura de Tefé que cancelasse ou suspendesse os shows de Simone Mendes, cujo cachê costuma variar entre R$ 700 mil e R$ 900 mil. A recomendação foi feita no mês de abril.
Além disso, foi sugerida a suspensão das apresentações de Pablo, que no mercado recebe entre R$ 250 mil e R$ 900 mil, e de Marcynho Sensação, cujo cachê médio fica entre R$ 100 mil e R$ 200 mil.
O objetivo da recomendação era evitar que os cofres públicos arcassem com R$ 2,15 milhões em meio a restrições orçamentárias e aos efeitos da estiagem.
Vale reforçar que todos os valores citados acima representam estimativas de mercado e não necessariamente os montantes globais pagos pelos municípios.
Impactos e necessidades
Na avaliação do cientista político Helso Ribeiro, os impactos das decisões dos gestores são sociais, além de administrativos. Isso porque, a população necessita de infraestrutura adequada e saúde e educação de qualidade.
“A população passa o ano inteiro sofrendo por falta de recursos, mas muitas vezes encara o evento como um alívio. Isso remete ao ‘pão e circo’: o povo segue na pindaíba, mas diz ‘o prefeito nos divertiu’. O impacto real não é percebido porque o sofrimento já é parte do cotidiano. A euforia do momento mascara o fato de que aquele gasto elevado não melhora nada, e pode até agravar a penúria depois”, afirma Ribeiro.
Sobre o investimento em artistas nacionais, o cientista é direto: “Em lugares com forte carência, esse desequilíbrio fica ainda mais evidente. Priorizar artistas locais seria mais inteligente e muito mais barato, já que muitos não receberiam nem 10% de um cachê nacional. Esse dinheiro poderia minimizar o sofrimento da população se fosse aplicado no básico, especialmente na saúde e na educação”.
Legitimidade
Quanto à legitimidade do uso de verba pública, Ribeiro destaca: “Além da legalidade, existe a concordância da população. Gastar com cultura é legítimo, mas precisa de bom senso. Você não pode ter um município sem uma casinha de saúde e, ao mesmo tempo, gastar o equivalente a construir três delas em um único show. Por outro lado, quem vende cerveja, churrasquinho ou água na festa acha maravilhoso, mas não percebe que o dinheiro do show saiu de impostos que poderiam beneficiar a própria família”.
O especialista reforça, ainda, que a cultura é importante, mas deve ser incentivada com responsabilidade. “Fomentar a cultura local é uma saída. O lazer é importante, mas não pode atropelar necessidades básicas”, afirmou.
No Amazonas, grandes eventos são uma das poucas oportunidades de lazer em regiões isoladas. Por outro lado, as necessidades básicas permanecem. A questão não é acabar com os shows, mas avaliar como são organizados, quanto custam e se atendem às prioridades da cidade.
