“Sawabona”. Estudante de Análise e Desenvolvimento de Sistemas, Daniel Messias explica que a saudação zulu significa: “Eu te vejo, você é importante e obrigado por você existir”. A expressão resume a filosofia do povo do Sul da África, que valoriza qualidades e potencialidades em vez de punir erros.
“Ao se reconectar com sua essência, a pessoa pode responder ‘shikoba’. Eu existo e eu sou bom para você”, complementa Messias.
Filosofia inspira pesquisa no Recife
A cultura sawabona-shikoba orienta a pesquisa conduzida por ele no Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar). Messias ensina robótica a jovens privados de liberdade na capital pernambucana.
“A educação precisa ser restaurativa. Resgatar as pessoas não pelo erro, mas pelas qualidades”, afirma, enquanto apresenta o robô seguidor de linha criado pela turma de jovens egressos da Fundação de Atendimento Socioeducativo de Pernambuco (Funase).
Para ele, esses princípios ajudam o país a repensar a reintegração de pessoas privadas de liberdade, hoje marcada pelo que chama de “necropolítica”. O termo, usado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, descreve políticas que eliminam narrativas, perspectivas e possibilidades de determinados grupos sociais.
Robótica como ferramenta de pertencimento
O projeto apresenta noções de robótica e pensamento computacional a jovens que deixaram ou ainda cumprem medidas socioeducativas. A primeira turma formou 18 egressos. A segunda reúne adolescentes ainda vinculados ao sistema.
“São jovens que achavam que não tinham condição nenhuma de se inserir na sociedade”, afirma o professor Henrique Foresti, engenheiro de sistemas e idealizador da plataforma Roboliv.re, usada na formação. “Esse sentimento de pertencer é o grande desafio. Os meninos chegam aqui e descobrem que, por meio da tecnologia, podem ter uma vida diferente.”
Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que, em 2024, havia 11 mil adolescentes cumprindo medidas socioeducativas no país. Mais de 95% eram meninos e quase 74% eram pretos ou pardos.
Criatividade nasce da vulnerabilidade
O objetivo inicial era apoiar a reinserção, mas a pesquisa revelou outro potencial: a criatividade desses jovens.
“Eles vieram de um contexto de vulnerabilidade, de tantas barreiras, que conseguem ter um olhar crítico e inovador diferente de um jovem que veio de um cenário de privilégio”, analisa Messias. “As pessoas que vieram de menos privilégio têm um olhar criativo para soluções em contextos diversos.”
Do aprendizado à renda

A próxima etapa da pesquisa investiga como transformar formação em geração de renda, com a possibilidade de criar uma startup em parceria com unidades socioeducativas.
“Quando ele sai do sistema, não encontra suporte nenhum. Esse processo se chama desfiliação. E aí o que acontece? A pessoa acaba reincidindo”, explica Messias.
Segundo ele, a ausência de apoio contrasta com estruturas oferecidas por organizações criminosas. “O tráfico é um local onde ele vai ter uma rede de apoio. Ele traz renda imediata”, aponta.
Um sistema que alimenta o cárcere
Messias afirma que o sistema socioeducativo pode funcionar como uma “escola” que encaminha jovens ao cárcere. Segundo o Ministério da Justiça, no primeiro semestre de 2025 o Brasil tinha quase 942 mil pessoas presas — uma das maiores populações carcerárias do mundo.
Vocação, carreira e tecnologia
A pesquisa também aplicará testes vocacionais para mapear habilidades e criar planos de carreira ligados às demandas do mercado. A localização no Porto Digital, polo tecnológico do Recife com 475 empresas, facilita a aproximação dos jovens com oportunidades reais.
Superação do preconceito
Para implementar o projeto, foi preciso enfrentar resistências.
“Quando esses jovens vinham para cá, era nítido o momento de tensão. A cara das pessoas dizendo: ‘o que essas pessoas estão fazendo aqui?’. Eu respondia: ‘elas estão fazendo inovação’”, lembra Messias.
Ele próprio já viveu essa sensação. Nascido no Coque, bairro com o menor Índice de Desenvolvimento Humano do Recife em 2006, passou três anos e meio sob medidas socioeducativas na adolescência.
Aos 26 anos, evita revisitar o ato que o levou ao sistema:
“Eu não quero falar do ato que eu cometi, porque aí eu vou estar olhando para o Messias que errou. Não me procure no passado, não, porque eu não estou lá mais”.
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