Por Juca Taketomi
Dizem os canoeiros mais antigos que o Igarapé do Tarumã, nas proximidades de Manaus, esconde mais do que peixes e raízes de sumaúma.
Dizem — com olhos apertados pelo tempo — que ali, quando a lua está cheia e a água espelha o céu sem tremor, portais se abrem, e o mundo dos vivos se mistura com o da Encantaria.
Era um sábado de Sol forte quando Ambrósio, rapaz de vinte e poucos anos, estudante de Biologia e curioso das coisas do invisível, decidiu ir sozinho remar no igarapé. Sempre teve fé “meia-morna”, como dizia a avó, mas brincava com o sagrado como se fosse lenda.
Na noite anterior, o rapaz participara de uma gira numa casa de umbanda, levado por uma amiga. Observou tudo com respeito, mas no fundo achava que aquilo tudo era só teatro de fé. — “Encantaria? Isso é só jeito bonito de falar de morte”, dissera ao sair do terreiro, rindo baixo. Mas algo naquela noite ficou com ele.
No dia seguinte, entrou em seu caiaque e adentrou o igarapé, sozinho. Ao chegar perto de uma curva antiga do rio, onde as árvores fazem um arco sobre as águas, viu algo impossível: uma velha negra sentada num tronco, com um cachimbo aceso. O cheiro era de arruda e alfazema.
— “Mas como…?”, murmurou. Não havia trilha, nem chão firme ali. Só água.
A velha olhou direto pra ele. Seus olhos não eram de gente — eram como poços fundos de estrela apagada.
— “Tá perdido, menino?”, ela perguntou com voz que parecia arranhar o tempo.
O rapaz riu, sem saber o que responder. Quando piscou… ela já não estava lá.
Foi quando o silêncio caiu, absoluto. Nenhum pássaro, nenhum inseto. A água parou. E ele sentiu um peso nos ombros, como se estivesse sendo puxado para dentro de um outro tempo. Um canto distante começou a se formar. Algo como um ponto de caboclo, mas sem língua humana.
Seu corpo se moveu sozinho. O remo caiu. A canoa virou com suavidade. E ele afundou — mas afundou não como se afoga um homem. Foi como atravessar uma cortina líquida. Do outro lado, o tempo não existia.
O rapaz se viu de pé, seco, diante de uma aldeia de luz azulada, com palafitas que flutuavam no ar. Homens e mulheres de várias etnias e rostos usavam cocares, panos brancos, túnicas, e carregavam cajados de madeira viva.
Uma mulher morena, de olhos verdes como rio com sol, se aproximou e lhe disse: — “Tu foste chamado, mesmo sem crer. Porque o coração escuta antes do juízo. Aqui é a Encantaria. Não vieste por morte, mas por correção. Ficarás até que compreendas o elo”.
Ele caiu de joelhos. Chorou sem entender por quê. Na Terra, seu corpo nunca foi encontrado. Só a canoa boiando, encostada numa raiz.
Dona Esmeralda, mãe pequena da casa que ele visitara, acendeu vela no altar e disse com voz de dor serena: — “Se encantou… Foi levado. Mas vai voltar. Quando o espírito aprender, a carne renasce”.
E dizem que nos dias de hoje, às vezes, quando a noite cai e o Tarumã respira neblina, um jovem de branco aparece na margem do igarapé, olhando pro céu com olhos de quem vê mundos que ninguém mais vê.
E que, um dia, ele vai nascer de novo. Com os olhos do mesmo menino, mas com o coração de um iniciado.
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