Em um país onde o jeitinho brasileiro é patrimônio imaterial, o açaí, singela joia roxa da floresta, quase uma entidade espiritual do Norte, alcançou o Olimpo da criatividade gastronômica.

O açaí já não é mais um simples fruto: é uma tela em branco para os Michelangelos da adulteração. E que arte ! Num momento em que o mundo se debate por orgânicos e sustentabilidade, nossos alquimistas de beco aperfeiçoam o conceito de “comida funcional”. O açaí agora é vendido e servido com papel higiênico e papelão, ricos em fibras, fibras insolúveis, patrióticas.

A cena é de um thriller policial com roteiro escrito às pressas por um humorista desesperado. Um homem, com a gravidade de um legista, rasga o saco roxo e sentencia: “Isso aqui é papel higiênico”. A plateia, entre o riso e o vômito, assiste à autópsia de um símbolo nacional.

Logo surge o parceiro de cena — o Watson da tapioca adulterada — abrindo outro saco com a destreza de um mágico de circo. E lá está o vilão: o papelão. “Olha aqui no fundo, ó! Papelão e papel higiênico, ninguém sabe mais o que é fruta e o que é embalagem”, lamenta o narrador com aquele “eu avisei” que só quem mora no Brasil entende.

Essa é a nova tendência gastronômica de Manaus. Quem precisa de polpa de fruta quando se pode saborear um iogurte de celulose? O “açaí papeado” é a inovação que faltava para o cardápio amazônico: grosso, consistente e com uma textura que lembra infância, principalmente se a pessoa for da geração que já engoliu um pedaço de caderno no recreio.

Mas sejamos justos: Manaus não inventou a roda da sujeira. Apenas a reciclou. A trilha foi aberta em Belém, a capital mundial do açaí que desde 2014 enfrenta a praga das batedoras clandestinas. Naquele ano, a Devisa revelou um festival de adulterantes que faria um químico alemão pedir demissão e virar monge.

Tinha farinha de tapioca para engrossar, acetona para “dar brilho”, liga neutra para sofisticar, e — o toque de mestre — papel higiênico e papelão para dar corpo e história. Um batedor, o poeta do capitalismo precário, justificou-se com rara franqueza: “Na entressafra o açaí fica caro e feio. A gente precisa dar um jeito.” Eis a máxima da economia nacional: se o natural não é rentável, o artificial resolve. O freguês pode até morrer de alergia ou engasgar, mas que compre barato, por favor.

E chegamos, enfim, à cereja — ou melhor, à lasca de papel — no topo da taça: a COP30.
Enquanto o planeta inteiro ensaia discursos inflamados sobre a transição ecológica, Belém se prepara para receber delegações, chefes de Estado, ambientalistas e celebridades veganas… todos prontos para salvar o mundo comendo um açaí “puro”, colhido direto da alma da floresta.

Fechemos os olhos e imaginemos: o diplomata sueco, bronzeado à força, saboreando sua tigela roxa e elogiando a “cremosidade única, quase fibrosa, cremosidade inconfundível da Amazônia, à base de celulose reciclada, o sabor da nossa transição ecológica literalmente feita de papel.

Ao som dos discursos que ecoam nos auditórios climatizados, alguém, em algum canto menos fiscalizado da capital, estará batendo seu açaí “especial”: textura grossa, gosto indefinido, consciência leve. Uma fantástica mistura amazônica de polpa, papelão e patriotismo.

E o mais incrível é que tudo combina com o espírito do evento. Afinal, se o planeta está derretendo, nada mais coerente do que brindar com um açaí biodegradável. No Brasil, até o golpe na natureza é reciclável.

A Vigilância Sanitária de Belém — heroica, quixotesca — deve estar rezando para que o sistema digestivo dos diplomatas seja tão resistente quanto o estômago dos paraenses. É uma luta desigual: Davi com uma prancheta, Golias com um liquidificador industrial e o apoio de toda uma cadeia produtiva da informalidade tropical.

No fundo, a saga do açaí adulterado é o retrato líquido e pastoso do país: uma terra riquíssima, sempre a um passo de transformar o sublime em tragicômico. A gente tem o maior bioma do mundo, a maior biodiversidade do planeta, e consegue misturar tudo isso com papel higiênico.
É quase poético, quase genial no Brasil onde até o açaí virou papelão – que papelão !

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