A obra “TRÊS Contos sobre a inutilidade da Arte”, de Otoni Mesquita, é uma exploração multifacetada e profundamente paradoxal sobre o papel da criação artística na vida humana.

Longe de uma simples negação do valor da arte, o título e os contos revelam uma complexa reflexão sobre a essência, a necessidade e as diversas manifestações da arte, muitas vezes incompreendidas ou desvalorizadas por um mundo pragmático.

Mesquita sugere que a arte, embora possa ser vista como “inútil” em termos convencionais, é uma força vital, uma fuga e uma forma de sobrevivência para aqueles que a praticam.

A introdução, “Tentativa de esclarecimento sobre os três contos e as outros desabafos”, já estabelece o tom. O autor revela que os contos, inicialmente, não visavam falar de arte, mas de “homens desajustados”. Contudo, essa perspectiva acabou por iluminar “o quê ou por que fazer arte”.

A criação artística é interpretada como uma “escapa de situações difíceis e embaraçosas”, uma “fuga ou reação” que permitiu ao autor “seguir e [o] trouxe até aqui”. Esta é uma das primeiras e mais fortes indicações do valor intrínseco e existencial da arte, mesmo que sob a alcunha de “inutilidade”.

“O Novo Ulisses”

Os contos e textos que compõem a obra mergulham em diferentes facetas dessa “inutilidade” essencial. Vejamos “O NOVO ULISSES”.

Este conto apresenta um náufrago sem memória, que, ao ser encontrado, é nomeado Ulisses. Sua “inutilidade” reside na sua incapacidade de se adaptar às convenções sociais e hierarquias. Ulisses não compreende o ódio, o amor exacerbado ou o desprezo.

Ele fala com todos como iguais, ignorando distinções sociais, e prefere a companhia de pessoas humildes, que se veem integradas à natureza. Sua fala mescla vocabulário popular e erudito, demonstrando uma aversão a expressões vulgares.

Ulisses questiona constantemente o “porquê” das coisas, buscando entender o funcionamento do mundo. A sua arte se manifesta em suas coleções de objetos naturais, como conchas, pedras e folhas, organizados como um museu particular, sem explicações textuais, apenas uma “ordem de proporção e tons”.

Essa é uma forma de arte pura, desprovida de intenção prática ou comercial, uma manifestação íntima e incompreendida pela maioria. Sua existência é uma busca incessante por sentido nos sonhos, sua única memória. Sua eventual desaparição, sem aviso, e sua constante insatisfação – “qualquer coisa pode ser melhorada” – reforçam sua natureza de “desajustado” em busca de algo além.

O segundo conto, “PASSADO A LIMPO”, foca diretamente na figura do artista e em sua prática compulsiva de criação de imagens. A arte é para ele uma “necessidade natural”, uma “atividade libertadora” e uma “forma de sobrevivência”.

Críticas à sua obra, como a de um “mascate” ou de uma moça que a considerava “sufocante” pela falta de “espaços de respiração”, revelam a incompreensão externa de sua arte.

O artista não buscava agradar ou comercializar; ele criava por uma “necessidade íntima” e como uma forma de “autorretrato”. O ponto culminante do conto é a dissolução de seu corpo após a morte, enquanto suas pinturas ganham vida própria, expandindo-se, tornando-se tridimensionais e transparentes, flutuando pela casa e escapando pelas janelas.

As telas originais ficam brancas, simbolizando uma memória apagada, mas a arte permanece, liberada de seu suporte e de seu criador. O destino do homem é “passar consigo mesmo e só levar aquilo que foi vívido”, enquanto a arte adquire uma liberdade sonhada.

“Novo Topus Uranos”

O conto “NOVO TOPUS URANOS” nos transporta para um mundo alienígena, uma utopia de eficiência e ausência de problemas humanos. Nesse ambiente, a arte, na forma tradicional, é “desconhecida” ou “inexistente”, exceto pela Música e Matemática, que são valorizadas pela “harmonia e exatidão das coisas” e pela sua utilidade.

Não há emoções intensas, disputas, hierarquias ou individualidade marcante. Todos são “ajustados”, “previsíveis” e “verdadeiros”, sem a necessidade de “fugas e fantasias ou outras formas de expressão”.

Este mundo serve como um contraponto à “inutilidade” da arte na experiência humana; na ausência de conflitos e imperfeições, a arte se torna supérflua. No entanto, a narrativa sugere que para o “humano convencional”, essa realidade pode parecer “sem graça e sem vibração”, destacando implicitamente a necessidade humana da arte para lidar com a complexidade da vida.

O conto “Beleza PASSADA” explora a natureza ilusória da beleza e a passagem do tempo através de uma imagem artística. Uma velha senhora, ao contemplar o cartaz de uma jovem modelo em uma vitrine, é transportada para sua própria juventude.

A imagem no cartaz funciona como um portal, permitindo uma fusão temporal onde passado e presente se encontram e se confundem. A arte (a imagem da modelo) não tem uma função prática imediata, mas é capaz de provocar uma profunda viagem interior, uma reflexão sobre a memória, a identidade e o caráter efêmero da existência.

A “inutilidade” da arte aqui reside em sua capacidade de transcender o óbvio e o material, operando no plano da emoção e da lembrança.

O texto “Confissões de um Frankstein” mergulha na complexidade da identidade humana, metaforicamente comparada a um “Frankstein”, composto de “diferentes peças e vontades”, muitas vezes “nem sempre conciliáveis”. O eu narrativo questiona a origem de suas atitudes, preconceitos e até mesmo a ideia de uma “natureza” pessoal.

A arte nesse contexto não é o foco direto, mas a própria condição humana como uma construção, um amontoado de experiências, aprendizados e heranças. A “inutilidade” pode ser vista na impossibilidade de controlar completamente o próprio ser, de ser “coerente e bondoso”, e na revelação de que a identidade e originalidade são, na verdade, “uma coleção de lições”.
“Arte Salva?”

Outro texto, a “Arte Salva?”, aborda diretamente a questão central. O autor, embora reconheça ter sido “salvo pela arte”, contesta a afirmação de que a arte “poderá salvar o mundo”.

Otoni defende que a arte não tem esse poder universal, mas serve para “sustentar a nós mesmo”, os “desajustados” que se entregam a ela. A arte é vista como algo “não transferível” e “subjetiva e sensitiva”, capaz de “impactar e provocar o entendimento de coisas, que a razão e a objetividade nem sempre são capazes de externar”.

O autor critica a banalização da arte como mero “produto”, “terapia ocupacional” ou “habilidade para ganhar a vida”, temendo que isso a descaracterize e promova uma formação superficial. Ser artista não é um título, mas uma “maneira de ser, expressar e inventar”, uma “vontade incontida de se preencher por alguma falta”.

A arte é uma “coisa essencial”, da qual “não há como escapar”. É uma busca de equilíbrio, um preenchimento de vazios. Todavia, também pode ser “letal” e “de risco”, levando a “desastres e tragédias” para alguns. A “inutilidade” se manifesta na incapacidade da arte de ser uma solução universal, mas sua utilidade profunda reside em seu poder transformador e de sustentação individual.

No texto “MEMORIAL EM BRANCO” Otoni reforça a ideia do artista como um ser que vive em uma “bolha” de ideias e impressões, incompreendida pelo mundo exterior. Sua vida é gasta na criação de uma “obra construída” que é “totalmente invisível” ou “vazia” para a maioria, pois carece de “senso prático ou utilitário”.

A arte é uma “prática intuitiva, induzida pela sequência dos acontecimentos”, uma maneira de “processar as coisas em volta” e de construir um “autorretrato” que muitas vezes se perde na incompreensão.

O artista é movido por uma compulsão interna, incapaz de calar ou não refletir, seguindo o “instinto animal e uma vaga intuição”. Sua “inutilidade” é a incapacidade de sua obra ser plenamente decifrável ou aceita, mas é a prova de sua existência e passagem.

Águas coloridas

Foto: Divulgação

Os textos autobiográficos “Minha coleção de água colorida” / “A Coleção de Águas Coloridas” fornecem uma fundamentação para a relação do autor com a arte, enraizada na infância.

A coleção de águas coloridas, criada com materiais simples (papel, mercúrio, iodo), não tinha valor comercial ou utilitário, mas proporcionava um “prazer insuspeito” e a sensação de ser um “criador”. É uma evidência primária da “inutilidade” da arte como uma busca por prazer estético e criação íntima, sem pretensões externas.

A lembrança dos globos coloridos em uma drogaria mostra como a beleza e a cor, mesmo em contextos banais, podem ser fontes de inspiração e encantamento que perduram e se transformam em impulsos criativos.

Os textos “Aquarela” / “Aquarelando” / “Minha maneira de aquarelar”, textos, focados na técnica da aquarela, funcionam como uma metáfora para a própria vida e o processo artístico. A aquarela é descrita como uma “viagem” sobre o papel branco, um “universo pleno de possibilidades”. É um “refúgio”, uma “ilha de paz e prazer” onde se reencontra a essência.

A prática exige concentração, persistência e disciplina, mas o “criar vem com o libertar”. A aquarela, com suas transparências e formas fluidas, permite “tornar visível o invisível”. A “inutilidade” aqui é a ausência de um fim prático ou um ganho material evidente, mas o valor está na “relação afetiva” com o material, no “prazer do exercício e no experimentar”, e na capacidade de “meditar” e “materializar o imaginário”. É uma forma de “voar”, de transcender a realidade e explorar novos mundos.

Arte, vida e liberdade

Enfim, a obra de Otoni Moreira de Mesquita em “TRÊS Contos sobre a inutilidade da Arte” constrói uma narrativa coesa e multifacetada sobre o significado da arte e da existência. A “inutilidade” que o título sugere é, na verdade, a libertação da arte de propósitos meramente práticos, comerciais ou de reconhecimento social.

Para Mesquita, a arte é uma necessidade intrínseca e existencial: uma forma de sobrevivência, de escape, e de preenchimento de uma falta inexplicável. A arte é profundamente pessoal e intuitiva, uma linguagem subjetiva, um autorretrato que se constrói ao longo da vida, muitas vezes incompreendido pelos outros.

Na visão de Otoni, a arte é uma busca incessante por sentido: seja nos sonhos de Ulisses, na compulsão criativa do artista, ou na meditação da aquarela. Também é “transformadora e reveladora”, capaz de romper com o bidimensional, de fazer o invisível visível, e de proporcionar experiências profundas de memória e identidade. E, ainda, a arte pode ser “paradoxalmente “perigosa”, pois ao mesmo tempo que salva pode consumir e levar a trajetórias de risco para o artista.

A “inutilidade” da arte, no contexto de Mesquita, é precisamente a fonte de sua maior potência. Ao não se submeter a fins utilitários, ela se torna essencial para a alma humana, um meio de compreender a si mesmo e o mundo, mesmo que de forma “desajustada”.

Ela não é um produto a ser consumido, mas um processo contínuo de ser e de se expressar, que ressoa com a natureza fragmentada e em constante busca do “Frankstein” humano.

Em última análise, a obra de Mesquita nos leva a reavaliar o que consideramos “útil”, sugerindo que as manifestações mais profundas e transformadoras da experiência humana residem, muitas vezes, naquilo que, à primeira vista, parece não servir para nada.

Juscelino Taketomi
Juscelino Taketomi

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