A Câmara Municipal de Manaus (CMM) está passando por uma transformação política significativa, refletindo a crescente influência das pautas religiosas, especialmente evangélicas, no legislativo local, o que impacta as discussões políticas.
As eleições de 2024 consolidaram ainda mais essa ascensão, com uma “bancada cristã”, predominantemente evangélica, ocupando hoje mais da metade das cadeiras da Casa. Esse movimento não apenas reflete o aumento da representatividade religiosa, mas também o fortalecimento de pautas conservadoras que dominam as discussões políticas da cidade.
Em 2024, Manaus teve uma renovação baixa de apenas 32%, com 13 novos vereadores eleitos, enquanto 28 parlamentares foram reeleitos. A representatividade feminina na Câmara, no entanto, sofreu um retrocesso, com apenas três mulheres eleitas, uma a menos do que em 2020.
A eleição também revelou uma tendência de crescimento da “bancada religiosa“, composta majoritariamente por parlamentares que defendem valores cristãos e políticas conservadoras. Entre os mais influentes, estão os vereadores João Carlos (Republicanos), Joelson Silva (Avante), Raiff Matos (PL), Eduardo Alfaia (Avante) e Yomara Lins (Podemos) mantiveram os seus mandatos na Câmara. Estes representantes têm se destacado por suas posições firmemente alinhadas à fé cristã e por propostas que buscam moldar a política local a partir de uma perspectiva conservadora.
Grupo heterogêneo

Para o cientista político Helso Ribeiro, a presença expressiva de evangélicos na política de Manaus não pode ser simplificada, pois há uma diversidade dentro desse campo religioso.
Ribeiro destaca que a expressão “bancada cristã” muitas vezes é usada de maneira genérica, mas os cristãos não formam um grupo homogêneo. O cientista político observa que, embora muitos dos chamados “evangélicos” adotem um posicionamento mais conservador, essa tendência não é universal.
Problemas diários da população

Em entrevista ao Em Tempo, o vereador eleito Zé Ricardo, do Partido dos Trabalhadores, que não está associado a pautas consideradas de conservadores, expressou que, embora não saiba exatamente qual será a pauta da “bancada cristã” ou evangélica, ele acredita que o foco principal dos vereadores conservadores ou não deve ser os problemas estruturais da cidade de Manaus.
“Entendo que o foco principal dos vereadores precisa ser realmente os problemas da cidade. Nós temos problemas estruturantes muito grandes, como é o caso da mobilidade urbana, assim como a questão da moradia e áreas de risco, que é necessário que a gente vá discutir projetos, propostas e, principalmente, cobrar da Prefeitura ações efetivas para ajudar a população a resolver esses grandes problemas. Eu ouvi, através de uma grande audiência, muitos representantes da sociedade civil, entidades, estudantes, professores de vários bairros, e realmente as pessoas estão apontando muitos problemas no dia a dia”, disse.
“Então, o nosso mandato, ouvindo aquilo que veio desses momentos, a gente vai estar enfatizando essa pauta do dia a dia da cidade e cobrando a prefeitura, porque é um mandato propositivo, com projetos e propostas, mas também de fiscalização e de cobrança”, completou o vereador.
Além disso, ele ressaltou a importância de ouvir a população, incluindo entidades civis, estudantes e professores, para identificar as principais necessidades da cidade e cobrar soluções para os problemas cotidianos. O vereador frisou que, como parlamentar, sua missão é legislar e fiscalizar, sempre com a cidade e o bem-estar da população como prioridades.
“Eu acredito que os vereadores, cada vereador vem de uma caminhada, cada um tem os seus eleitores, cada um está lá com uma missão. Da minha parte, eu entendo que o parlamentar é eleito para legislar e fiscalizar. E esse é o foco principal da minha atuação. Não sei como é que vai ser dos demais vereadores, até porque os trabalhos legislativos estão iniciando. Mas eu espero que todos olhem a cidade e o sofrimento da população em relação à deficiência de muitos serviços públicos de responsabilidade municipal.”
Ascensão da bancada evangélica
Apesar da população manauara ter eleito o petista Zé Ricardo com 17,3 mil votos, sendo o segundo candidato mais votado para vereador em 2024, nomes ligados a igrejas, mobilizam fiéis e conseguem se reeleger na CMM, com uma agenda conservadora e, muitas vezes, contra direitos de minorias.
Dentre os reeleitos em Manaus, destacam-se figuras como João Carlos (Republicanos), pastor da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), e presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Família e dos Valores Cristãos da CMM. Ele foi reeleito com 9,4 mil votos. Joelson Silva (Avante), pastor da Igreja Evangélica Assembleia de Deus no Amazonas (Ieadam), obteve 10,2 mil votos, garantindo seu terceiro mandato como vereador. Ambos têm sido peças-chave na construção de uma agenda cristã conservadora na política local.
Além deles, Raiff Matos (PL), cantor gospel e ministro de louvor, tem se destacado por suas propostas que se opõem à comunidade LGBTQIAP+ e por sua defesa de valores conservadores. Raiff Matos foi reeleito com 7,1 mil votos.
Eduardo Alfaia (Avante), pastor da Igreja Evangélica Assembleia de Deus – Ministério Madureira (IEADMM), também permaneceu no poder após as eleições de 2024. Yomara Lins (Podemos), pastora e uma das fundadoras da Comunidade Evangélica Internacional do Avivamento (CEIA), é a única mulher da bancada evangélica, sendo reeleita com a bandeira da representatividade feminina.
O crescimento dessa bancada está ainda associado à força de partidos que também estão ligados a pautas realigiosas, como o Avante, União Brasil e PL, esse último sendo o partido do ex-presidente Jair Bolsonaro.
O atual prefeito de Manaus, David Almeida, é um dos representantes do Avante, partido que tem fortes ligações com grupos religiosos, especialmente com a bancada evangélica.
O Avante e o União Brasil foram as siglas que mais conquistaram cadeiras nas eleições de 2024, com 7 e 6 vereadores eleitos, respectivamente. O PL ocupa o terceiro lugar com 4 cadeiras. A composição partidária da Câmara Municipal de Manaus reflete a crescente presença de partidos que defendem a agenda conservadora, liderada por figuras religiosas.

Força poderosa
Conforme analistas, o crescimento da bancada evangélica na CMM tem relação direta com a ascensão do bolsonarismo em Manaus. O número de religiosos na cidade e o apoio das igrejas ao ex-presidente Jair Bolsonaro são apontados como responsáveis por solidificar o apoio de parlamentares com uma agenda conservadora. Em 2022, Bolsonaro venceu as eleições em Manaus com mais de 60% dos votos, e, em 2023, a cidade foi palco da Marcha para Jesus, evento que contou com a presença do ex-presidente.
Este alinhamento entre a bancada evangélica e o bolsonarismo é mencionado como um dos motores para a expansão da agenda religiosa dentro da política municipal, o que pode reforçar as conexões entre poder político, econômico e religioso.
Em relação ao futuro da bancada evangélica, o cientista político Helso Ribeiro acredita que ela continuará se fortalecendo, principalmente por meio de três grandes igrejas: a Assembleia de Deus no Amazonas (Ieadam), a Igreja Restauração e a Igreja Universal. Essas instituições despontam por possuírem grande influência eleitoral, e a etiqueta “evangélica” se tornou uma marca que facilita a eleição de candidatos, especialmente aqueles que recebem o apoio de grandes lideranças religiosas. Para ele, o discurso conservador continuará sendo uma força relevante na política local.
“Elas têm uma incidência em boa parte do eleitorado. O deputado Silas Câmara, que é da Assembleia de Deus, ele está na Câmara de Deputados, acho que há seis ou sete mandatos. Então, diria que é uma bancada que continua se fortalecendo, baseado nesse discurso conservador. Então vejo que cada vez mais deputados vão procurar essa etiqueta. Não sei se esses candidatos têm comportamento, mas a etiqueta evangélica, acho que está pegando bem para um público bem específico. Quando esse candidato, com essa etiqueta evangélica, é abençoado por uma grande liderança, a eleição dele se facilita, de certa forma.”
Ele aponta que, tanto no Executivo quanto no Legislativo, candidatos com apoio religioso ainda desempenham um papel importante e continuam a ser bem-sucedidos nas urnas. A reeleição de vereadores como João Luiz, ligado à Igreja Universal, demonstra que a influência religiosa permanece significativa, embora os votos se dividam entre várias lideranças.
Ribeiro conclui que, embora a política de Manaus esteja em constante transformação, a bancada evangélica continua a ser uma força poderosa, com o potencial de influenciar as decisões políticas por muitos anos.

Números
No Amazonas, a Ieadam conta com 3 mil templos, 2 mil pastores cadastrados na Convenção Estadual da Assembleia de Deus no Amazonas (Ceadam), mais de 10 mil líderes de células, e um número geral de membros da ordem de 300 mil.
Não há informações sobre o número de membros da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) no Amazonas, mas a organização religiosa contava com um total 175 igrejas em 2017 no Estado, número que deve ter crescido nos últimos oito anos.
Já o Ministério Internacional da Restauração (MIR) não tem detalhes sobre o número de membros, mas já conta com mais de 30 anos de atuação em Manaus.
Impactos na diversidade e direitos humanos
O fortalecimento da bancada conservadora tem gerado debates intensos sobre direitos humanos e liberdade religiosa. Questões como os direitos da comunidade LGBTQIAP+ e a educação sexual nas escolas têm sido alvo de propostas que limitam a inclusão de temas de gênero e sexualidade no currículo escolar.
Raiff Matos, por exemplo, é conhecido por suas propostas que restringem a linguagem neutra nas escolas e defendem um modelo de educação em que os pais devem aprovar qualquer material pedagógico relacionado a gênero. Além disso, em suas manifestações públicas, Matos tem se posicionado contra a participação de mulheres trans em esportes femininos, declarando essa prática como uma “aberração”. Tais declarações geram preocupações sobre o respeito à diversidade e à dignidade dos grupos minoritários.
O professor, pesquisador e ativista LGBT+ Gabriel Mota critica a crescente influência da bancada evangélica na política de Manaus, afirmando que, tanto na capital quanto no restante do Brasil, esse grupo tem barrado projetos que visam ampliar os direitos da comunidade LGBT+.
“Em Manaus, assim como no restante do Brasil, a bancada evangélica tem usado sua influência política para barrar projetos que ampliam direitos da comunidade LGBT+.”
Ele observa que o conservadorismo religioso tem sido utilizado como uma forma de moralizar a sociedade, impondo valores específicos sobre as leis, como por exemplo, com vereadores perseguindo livros que fazem referência a famílias homoafetivas e deputados aprovando Leis que proíbem a vinculação de crianças à homossexualidade em campanhas institucionais.
“A CMM, que tem uma bancada quase que 50% evangélica, usa a comunidade LGBTQIA+ para garantir a defesa dos seus costumes, uma vez que muitas dessas igrejas não nos reconhecem como cidadãos dotados de direitos civis. Esse conservadorismo religioso atua na política como um mecanismo de moralização da sociedade, buscando impor valores específicos às nossas Leis.”
“Tem vereador indo atrás de livro que faça referência às famílias homoafetivas, tem deputado aprovando Lei na assembleia que proíbe a vinculação de crianças à homossexualidade em veiculações institucionais, e tudo isso tem um objetivo que é fazer a manutenção de um eleitorado que espera exatamente isso: que esses eleitos cassem nossos direitos e representem um freio nas conquistas sociais que buscamos, como redução da violência, escolas mais seguras e emprego para a população trans sair da prostituição.”
Direitos LGBT+

O professor também critica como vereadores e deputados ligados à bancada evangélica em Manaus e no Amazonas utilizam discursos religiosos para deslegitimar as pautas LGBT+.
“Frequentemente, em debates públicos e legislativos, vereadores e deputados ligados à bancada evangélica em Manaus e no Amazonas utilizam discursos religiosos para deslegitimar pautas LGBT+, associando-as a uma ‘ameaça aos valores da família’. Ao mesmo tempo que eles nos consideram uma ameaça às famílias, muitos de nós estamos na luta para tentar viver em espaços que não nos violentem e excluam.”
Mota ainda aponta que a comunidade LGBT+ tem falhado em reagir de maneira organizada. Ele lamenta a falta de união e de ação coletiva dentro da comunidade, que, segundo ele, se reflete na ausência de protestos e mobilizações em locais como a CMM ou a Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (Aleam).
“No campo político, a comunidade LGBTQIA+ não reage. Na verdade, não existe um senso de comunidade e está cada um por si. Isso leva a um ativista ou outro e alguns grupos nacionais a intervir através da judicialização de ações que revertam essas empreitadas da bancada cristã. Você não vê nos últimos anos, por exemplo, pessoas LGBT+ organizadas indo para a frente das CMM ou Aleam protestar. Falta sensibilidade e entendimento que, independente dos privilégios que temos, ainda tem muita gente que sofre todo dia em casa. E não é um comentário revoltado em rede social que vai pressionar os políticos locais.”
Sobre a atuação da bancada em temas sensíveis como a igualdade de gênero e os direitos da comunidade LGBTQIA+, Helso Ribeiro afirma que a maior parte dos líderes evangélicos tem uma postura conservadora, muitas vezes contrária a esses temas. Contudo, ele observa que há uma diferença significativa em como esses temas são tratados por diferentes partes da sociedade, apontando a hipocrisia de algumas atitudes em relação à comunidade LGBTQIA+.
“Eu diria que a grande parte tem essa liderança evangélica, assim chamada, no Congresso Nacional, tanto na Câmara quanto no Senado. Eu diria que eles são avessos a esses temas, principalmente quando se trata da comunidade LGBTQIA+. E eu acho que eles acabam se fortalecendo, mostrando que são contra essas temáticas, porque uma boa parte da sociedade é hipócrita.”
Influência econômica das igrejas
Manaus é uma das cidades mais religiosas do Brasil, com 7.865 igrejas e templos, número que supera o total de escolas (1.743) e hospitais (1.056) da cidade. Essa grande quantidade de templos reflete a presença ativa das igrejas no cotidiano dos cidadãos e o poder de mobilização nas campanhas eleitorais. A força econômica dessas instituições também tem sido um fator crucial na eleição de políticos que defendem seus interesses.
Entre as principais denominações que influenciam a política local estão a Igreja Universal do Reino de Deus, a Assembleia de Deus e outras igrejas neopentecostais. A ligação entre os políticos e essas igrejas fortalece a base de apoio de seus mandatos, resultando em alianças que visam assegurar o poder político das religiões no espaço público.
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