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A última colheita de João do Rio

Ouro não era semente: não precisava de chuva, só de sangue

A riqueza, quando veio, veio em punhados
A riqueza, quando veio, veio em punhados. Foto: Reprodução

O sol do Amazonas não queima, esfola. João do Rio sabia disso desde menino, quando aprendera a ler o céu pela cor da pele do pai, rachada como terra seca. Trinta anos depois, a enxada ainda rangia no mesmo pedaço de chão, mas a terra já não sangrava mandioca. Só dava pó e promessas mofadas. As do governo vinham em cartazes coloridos, anunciando sementes milagrosas que nunca chegavam, e em homens de gravata que sorriam para fotos entre plantações moribundas.

— Fertilizante é o caralho, resmungou João, cuspindo no solo raquítico. A última enxadada ecoou como um estampido. Foi quando ouviu o ronco do barco a motor rio acima, trazendo não as sementes prometidas, mas Seu Elias, o “mercador de sortes”. Trazia no barco um saco de arroz, dois litros de cachaça e uma pergunta:
— Quer ficar rico ou quer ficar morto?

Naquela noite, sob um céu entupido de estrelas, João escutou o rio contar segredos. O ouro não era semente: não precisava de chuva, só de sangue. No dia seguinte, deixou a roça para as formigas saúvas e seguiu o cheiro de gasolina queimada até o garimpo. A Agricultura Familiar, a que se dedicava, não significava mais nada.

“Bem-vindo ao Inferno Verde”, dizia a placa feita de tábua podre na entrada do acampamento. Homens sujos de lama e mercúrio riram quando ele perguntou por luvas. — Luvas são pra viado e pra político, cuspiu um sujeito sem três dedos. João aprendeu rápido. A peneira substituiu a enxada, o barulho ensurdecedor dos motores tomou o lugar do canto dos uirapurus, e o rio, outrora cheio de pirarucu, virou uma lama âmbar que cheirava a podre.

Os fiscais do governo apareceram no terceiro mês, não para dar apoio, mas para cobrar “taxas de proteção ambiental”. João gargalhou até chorar. — Cadê vocês quando a plantação vira cinza? Os homens de colete retorceram a boca, mas aceitaram o saco de ouro em pó sem reclamar.

A riqueza, quando veio, veio em punhados. João comprou uma televisão a satélite, botinas de couro de jacaré e até uma pistola 38 — “pra matar cobra”, disse à mulher, que já não o reconhecia pelo cheiro. Mas o ouro era um amante caprichoso: dava com uma mão e afogava com a outra. Na semana que João achou uma pepita do tamanho de um ovo de galinha, um desmoronamento engoliu dois garimpeiros. Um deles era o sujeito sem dedos.

— Tá vendo isso aqui? — Seu Elias apontou para o rio turvo, enquanto contabilizava a dívida de João por combustível e comida enlatada. — Isso não é água, não. É cuspe do diabo. E a gente tá nadando.

No último dia de sol, João olhou para as próprias mãos. Já não eram de agricultor, nem de garimpeiro: eram garras negras de quem cavou o próprio buraco. Lembrou-se do pai, enterrado sob uma cruz de madeira apodrecendo na roça abandonada. “Talvez o ouro seja só outra semente”, pensou, rindo de um humor que nem ele mesmo entendia. “Só que em vez de fruto, dá cadáver”.

Quando os helicópteros do IBAMA chegaram, João correu para a mata como um animal acuado. No bolso, a pepita de ouro pesava mais que a alma. E no ouvido, ecoava a frase do pai, dita numa época em que a terra ainda dava frutos:
— Filho, no Amazonas, até a esperança é clandestina.

Enquanto isso, em um pomposo evento, em Brasília, um ministro discursava sobre “desenvolvimento sustentável” para investidores alemães. No telão ao fundo, imagens de floresta intocada na Amazônia, com legendas otimistas e palmas empolgadas de representantes de ongs ambientalistas.

— O Brasil está comprometido com a preservação ambiental — dizia o ministro, sorrindo como um vendedor de pomada para calo.

E na floresta, sob um sol escaldante, João corria sem saber se fugia da lei ou da malfadada sorte.

Juscelino Taketomi¹.

¹Articulista do Portal Em Tempo, Juscelino Taketomi, é Jornalista. Há 28 anos é servidor da Assembleia Legislativa do Amazonas (Aleam)

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