No coração da Feira do Mutirão, na Zona Leste de Manaus, uma banca de bodó preserva um legado construído com amor, trabalho e ensinamentos passados de pai para filho. Ricardo Queiroz dos Santos assumiu com coragem e criatividade o espaço deixado por seu pai, José Gonzaga — o “Rei do Bodó” — após sua partida decorrente de um câncer.
Neste especial do Dia dos Pais, o Em Tempo conta a trajetória de Ricardo — enfermeiro, feirante, empreendedor e, acima de tudo, um filho que decidiu honrar o maior ensinamento que recebeu: ser um homem de valor.
Bodó é elo de ligação

Filho de José Gonzaga, lendário permissionário da tradicional Feira do Mutirão, Ricardo cresceu entre os corredores da feira, observando o pai vender peixe com orgulho. Mas, ironicamente, o próprio pai dizia que aquele ambiente não era para ele.
“Meu pai sempre falava que ali não era futuro pra mim, que eu tinha que estudar e buscar uma profissão”, relembra Ricardo.
Obediente, ele seguiu o conselho. Mas a feira, que um dia parecia distante de seu destino, acabou se tornando o palco principal de sua vida e seu maior elo com o pai.
Formação em Enfermagem: um sonho realizado com o apoio da família

Movido pelo incentivo dos pais, Ricardo seguiu o caminho dos estudos. Depois de passar pela Marinha, onde atuou como cozinheiro, concluiu o curso técnico de enfermagem e, mais tarde, se formou como enfermeiro.
“Ele participou da minha colação de grau ainda. Teve a oportunidade de ver que eu cumpri o que ele sempre pediu para mim. Como um bom filho, fui obediente e cumpri”, conta emocionado.
Ricardo chegou a atuar na área da saúde por anos, dividindo sua rotina entre o hospital e os compromissos familiares. Mas o destino ainda o levaria de volta à feira.
Chamado da responsabilidade

Entre 2020 e 2021, um diagnóstico mudou tudo. José Ricardo foi diagnosticado com câncer e precisou se afastar das atividades na feira. Foi então que Ricardo tomou uma decisão que marcaria sua vida.
“A gente teve o diagnóstico de câncer do meu pai, a qual ele teve que se ausentar por inteiro das suas atividades da Feira do Mutirão. E eu como profissional da área da saúde, atuante, sabia que a partir do momento que a gente retirasse daquele local, a gente poderia agravar ainda mais a doença, porque o paciente sente essa exclusão do ambiente de trabalho e acaba afetando em relação à doença. Então eu conversei com meu pai, conversei com minha mãe, falei para eles que eu não podia deixar aquilo acabar”.
Sem experiência direta com peixe, mas com muito amor e respeito ao ofício do pai, Ricardo mergulhou de cabeça no negócio. “Acima de tudo, eu via aquilo como um meio de eu poder honrar o meu pai em vida. [..] Nada mais justo do que eu poder dar tudo isso para ele”, afirma.
Bodó virou estrela na banca mais famosa de Manaus

O que começou como um gesto de amor se transformou em uma revolução criativa. Ricardo passou a experimentar formas diferentes de vender o bodó, peixe amazônico muito apreciado na região.
“A gente passou a descascar, depois a gente descascou, a gente ficou uma freezer cheia de boró descascado e não sabia o que fazer, daí a gente fez picadinho, ado picadinho surgiu a ideia de a gente fazer linguiça de bodó.”
Apostando no marketing perfeito, Ricardo criou bordões como “Bodó Zap” e “Bodófone”, além de entregar em toda Manaus com os “Bodó Boys”. O vídeo que viralizou na internet foi o pontapé de uma nova fase para a banca do Rei do Bodó.
Legado do Rei do Bodó

Depois da partida do pai, tudo mudou. A ausência virou saudade, mas também combustível para seguir. Ricardo lembra das conversas em que previa o sucesso do negócio familiar — mesmo quando ninguém acreditava.
“Eu sentei com meu pai e falei: ‘Pai, o senhor tem que treinar, tem que falar pra mim de onde o senhor veio, como foi sua história, porque a galera vai vir aqui em casa, vai querer lhe entrevistar pra saber como tudo começou.’ Ele ria, falava que eu era louco, que era pra eu estudar e seguir minha profissão. Mas eu falei: ‘Não, pai, o senhor vai ver, um dia vai acontecer isso.’ E aconteceu.”
Hoje, a marca “Rei do Bodó” é reconhecida em toda Manaus, inspirando outras famílias e empreendedores.
Homenagem

Com a voz embargada, Ricardo encerra sua homenagem ao pai com um recado direto, carregado de emoção e gratidão:
“Ele foi um bom pai, ele foi um bom marido, ele foi um bom avô. Que ele fique em paz, que ele deixou um filho — um homem, um pai, um marido — que vai honrar a família dele, que vai honrar todos os ensinamentos que ele deixou e que vai perpetuar a história e o legado do Bodó enquanto eu viver.”
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