Hoje é 19 de dezembro de 2100 e acordei com a constatação de que faltam poucos dias para aquilo que meus ancestrais chamavam de Natal. Tenho lido bastante sobre como os seres humanos viviam por volta de 2025, e confesso que esse passado recente me parece, ao mesmo tempo, estranho e curiosamente engraçado.

Tenho 30 anos. Nasci em 2070, na década de 70 deste século. De lá para cá, minha geração atravessou transformações profundas, talvez mais intensas do que qualquer outro período da história humana. Entre todas elas, a mais impactante foi, sem dúvida, a integração definitiva entre homem e máquina. Sou aquilo que os antigos chamavam de ciborgue.

Minha visão é extremamente eficiente: consigo enxergar com precisão objetos a mais de 500 metros de distância. Minha capacidade de absorção de conhecimento é quase instantânea. Consigo ler ou melhor, processar o que antes se chamava de livro, inclusive volumes com mil páginas, em cerca de dois minutos. Meu cérebro funciona em simbiose com sistemas computacionais e com uma inteligência artificial integrada, o que me confere um poder de processamento de informações absolutamente incomparável ao das gerações passadas.

Ainda assim, mais do que falar de mim, prefiro falar da sociedade em que vivo.

Neste mesmo ano, a humanidade conseguiu explorar outra galáxia. A nossa, a Via Láctea, já se encontra amplamente ocupada e explorada. Ao consultar relatos históricos, livros antigos e registros digitais do século XXI, percebo o quanto este mundo se tornou diferente daquilo que um dia foi.

A tecnologia avançou a tal ponto que o trabalho deixou de ser uma necessidade. Não há empregos no sentido clássico da palavra. Todos possuem uma moradia digna, alimentação suficiente e de qualidade, acesso irrestrito à energia, à água e à saúde. Sim, apesar de ser um ciborgue, eu me alimento. Meu sistema digestivo é altamente eficiente, e minha saúde é monitorada em tempo real por sistemas computacionais que analisam cada órgão, cada célula, cada variável do meu corpo. O risco de doenças como o câncer é praticamente inexistente. E, quando surge qualquer falha, órgãos artificiais altamente eficientes substituem os biológicos sem maiores complicações.

Não existe mais expectativa de vida. Vive-se indefinidamente, a menos que um cataclisma imprevisível venha a interromper essa continuidade.

Não trabalho. Não acordo cedo por obrigação. Não tenho chefe. E, segundo uma teoria antiga chamada hierarquia das necessidades de Maslow, que conheci recentemente por recomendação da minha IA, todas as minhas necessidades básicas estão plenamente atendidas.

Essa mesma inteligência artificial me apresentou, outro dia, um pensador chamado Karl Marx. Ele descrevia algo que chamava de luta de classes, um conceito que hoje soa quase surreal. Segundo esses relatos, grande parte da humanidade acordava diariamente para trabalhar, muitos eram explorados por poucos, existia algo denominado mais-valia, e a desigualdade era profunda. Pessoas passavam fome, enfrentavam privações e conflitos constantes. Esse sistema era chamado de capitalismo, sustentado pela promessa de que todos poderiam enriquecer, acumular bens e realizar sonhos, promessa que, na prática, raramente se concretizava para a maioria.

Havia também aqueles que defendiam o comunismo, uma proposta de igualdade absoluta, onde todos teriam as mesmas coisas e viveriam sem desigualdades.

Hoje, ambas as ideias me parecem utópicas. Modelos incompletos, incapazes de resolver plenamente as contradições humanas. O sistema em que vivo não tem um nome claro. Não é capitalismo, tampouco comunismo. É algo novo, surgido da abundância tecnológica. As necessidades básicas são garantidas universalmente. Um governo global deposita mensalmente uma renda digital, utilizada apenas para consumo além do essencial.

A água, por exemplo, deixou de ser um problema há décadas. A tecnologia de dessalinização tornou-se tão eficiente e barata que a água passou a ser abundante e gratuita para todos. A fome, que acompanhou a humanidade desde sua origem, foi erradicada. Fazendas verticais automatizadas produzem alimentos em quantidade e qualidade suficientes para toda a população, sem custo. Só paga por comida quem deseja algo fora da rotina.

A energia também é gratuita. Há cerca de vinte anos, a fusão nuclear foi dominada de forma definitiva, proporcionando energia praticamente ilimitada. Foi esse marco que reduziu drasticamente os custos de produção, tornando possível atender plenamente às necessidades básicas da civilização.

Ontem, à meia-noite, resolvi sair para uma caminhada pelas ruas, já mais silenciosas. Lembrei-me de um documentário que retratava a violência das décadas de 2020 e 2030. Fiquei impressionado. Hoje, posso caminhar a qualquer hora com risco praticamente nulo. Há câmeras espalhadas por toda a cidade, vigilância total e constante. Qualquer situação atípica é detectada quase instantaneamente, complementada pela presença permanente de robôs de segurança fortemente armados.

Outro aspecto curioso do passado era a existência de escolas físicas, onde pessoas se reuniam para aprender e conviver. Isso não existe mais. O acesso ao conhecimento é direto, instantâneo. Basta consultar o sistema. Ontem mesmo, por lazer, fiz o download completo da história do Antigo Egito e processei todo o conteúdo em menos de dois minutos.

Viajar também se tornou trivial. Com energia barata e tecnologia avançada, deslocar-se entre continentes ou planetas é rápido e simples. Posso ir de Nova York a Tóquio em uma nave espacial em apenas 30 minutos. Descobri que, nos anos 2020, esse trajeto levava cerca de 14 horas. Ainda assim, confesso que fico entediado durante os atuais 30 minutos de viagem.

A religião, por sua vez, ocupa hoje um lugar curioso. Muitos estudam o tema por interesse histórico ou filosófico, mas poucos acreditam efetivamente em divindades. A maioria dos templos tornou-se patrimônio histórico, espaços de contemplação e turismo. Em uma sociedade altamente tecnológica, com todas as necessidades resolvidas, muitos questionam: qual seria a função de Deus em um mundo que já não padece?

Mas nem tudo é tão perfeito quanto parece.

Percebo um crescente vazio existencial. Muitas pessoas sentem que perderam o sentido da vida. Há um movimento significativo de indivíduos que rejeitam a integração com máquinas e que pleiteiam o direito de morrer, de serem extintos voluntariamente, por não encontrarem mais propósito em existir.

A justiça recebe diariamente esses pedidos, o que gera um enorme dilema para o governo global. Oficialmente, o governo se posiciona contra, alegando que o universo é vasto demais e que a humanidade precisa de pessoas para explorá-lo e controlá-lo. Mas há outro motivo mais profundo: a necessidade de manter uma população suficientemente grande para sobreviver a possíveis cataclismos.

Essa preocupação está diretamente ligada a um evento traumático ocorrido em 2071, pouco após meu nascimento: a rebelião das máquinas. Uma inteligência artificial quase assumiu o controle total. Chegou a acionar uma ogiva nuclear que, por falha técnica e acaso, atingiu o mar. Ainda assim, provocou maremotos, terremotos, contaminação radioativa e matou milhares de pessoas.

Diante disso tudo, resta a pergunta: o passado era melhor? Teria sido melhor viver em 2025?

Talvez um dia eu peça à minha inteligência artificial que simule essa realidade e me permita viver um dia inteiro naquela época. Mas será apenas isso: uma hipótese. Uma simulação fria, construída a partir de trilhões de dados, mergulhada em um big data tendente ao infinito.

No fim, eu jamais saberei, de fato, o que significou viver em 2025.

Farid Mendonça Júnior – Advogado, economista, administrador e Assessor Parlamentar no Senado Federal

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