Com a geladeira praticamente vazia, Vitória Raquel Peçanha Guimarães Abreu, de 18 anos, ouve a filha, que já nasceu com fome, pedir comida. Sem dinheiro para se alimentar, a jovem mal conseguia comer durante a gestação.
“Na gravidez da minha filha, eu passei fome e ela já nasceu desnutrida. Não sabia que o pai dela usava drogas. Depois, descobri que ele gastava o dinheiro com o vício e deixava a gente com fome”
, conta Vitória em entrevista à BBC News Brasil.
Durante a gestação, Vitória passava o dia em busca de reciclagem para vender e comprar comida. A alimentação dela sempre foi baseada principalmente em embutidos, como salsicha e linguiça, além de refrigerante, salgados e iogurte. Hoje, a rotina é quase a mesma e frutas e legumes são raridade na casa da família.
Os alimentos mais saudáveis são consumidos na casa apenas quando Vitória consegue comprar mais barato ou ganha na xepa da feira livre.
Dados compilados pela Fundação Abrinq revelaram que, nos últimos cinco anos, aumentou em mais de 2 milhões o número de crianças que têm renda familiar de até um quarto do salário mínimo no Brasil. Isso significa que, assim como a filha de Vitória, 10,5 milhões de pessoas com menos de 14 anos têm menos de R$ 303 para se alimentar, comprar roupas, medicamentos e gastar com momentos de lazer por mês.
Esses dados foram extraídos da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE, e revelam, na visão dos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, um problema social grave, com impacto econômico, educacional, de segurança e saúde pública.
Isso ocorre porque uma criança inserida em uma família que se encontra nessas condições não consegue ter acesso a uma alimentação saudável. Sem comida de qualidade, ela não se concentra nos estudos e precisa começar a trabalhar mais cedo para complementar a renda da casa.
A tendência é que esse ciclo de fome, desnutrição e baixa renda leve à perpetuação da pobreza desta criança e da família dela.
Hoje, Vitória se separou do homem que era viciado em drogas e mora com a filha e o atual marido em uma casa alugada. Somando o Auxílio Brasil e o salário dele, a família tem uma renda mensal de R$ 1400.
“No mês passado, fiquei sem nada dentro de casa. Aqui tem um bar que a gente pega fiado para depois pagar, mas é caro. Esses dias eu fiz até pouca comida. Minha mãe me deu uma cesta básica para ajudar porque é muito difícil”
, diz.
Base do desenvolvimento
A diretora-presidente da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Mariana Luz, defendeu que a primeira infância (até os 6 anos) deve ser tratada como prioridade entre as políticas nacionais de governo.
“É nessa fase que você forma todas as bases do desenvolvimento. Nessa fase, o cérebro faz 1 milhão de conexões por segundo e forma 90% dele. É o que a gente chama de desenvolvimento integral, composto por três dimensões: física e motora, cognitiva e a sócio-emocional”
, diz Luz.
Ela explica que, para desenvolver essas conexões de maneira plena, a criança precisa receber estímulos e ter uma base sólida de crescimento.
“Tem que olhar a educação, saúde e assistência social. É necessário que essas pastas do governo trabalhem juntas para que a criança não passe fome, tenha acolhimento e amparo social adequado, tratamento de saúde e vacina. A mãe precisa compreender o que acontece com a criança e acompanhar a educação dela. Também é necessário que ela frequente a creche e a pré-escola para que os pais trabalhem e tenham renda”
, afirma.
Segundo Mariana Luz, há 20 milhões de crianças no Brasil e uma em cada três vive na extrema pobreza. Para ela, esse problema só vai ser combatido efetivamente quando for tratado de maneira sistêmica.
“Não adianta ter ações pontuais e não endereçá-las de uma forma mais completa. É algo complexo, mas viável. Cidades no Brasil têm compreendido essa abordagem, como São Paulo e Boa Vista. Ao mesmo tempo em que estamos no topo da produção de alimentos do mundo, a gente desperdiça até oito vezes o que poderia alimentar essa população que passa fome”
, diz.
*Com informações do Uol
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