Perder o cabelo é o estereótipo. O que quase ninguém conta é que a quimioterapia também “desprograma” a pele: resseca, inflama, coça, racha — e convida infecções oportunistas para a festa.

No Brasil, o câncer de mama segue como o mais incidente entre as mulheres, com 73.610 novos casos/ano estimados pelo INCA para 2023–2025; é muita gente precisando de cuidado da pele de verdade, não “creminho fofo” com perfume de flor.

Soma-se o panorama oncológico geral (cerca de 704 mil casos novos/ano no triênio) e entende-se a escala do problema. E uma parcela expressiva dos pacientes inicia o tratamento pela quimioterapia (55,1% como primeira modalidade); isto é, pele sensível não é exceção — é regra operacional.

“Mas já não existem produtos específicos?”

No varejo, ainda é nicho: surgem iniciativas pontuais justamente denunciando a lacuna — sinal de que o mercado tradicional não entrega bem para esse público. Enquanto isso, as diretrizes dermatológicas deixam claro o básico: rotina gentil, evitar alérgenos/irritantes (fragrâncias, álcool, tensoativos agressivos), hidratar muito e proteger a barreira. Também vale lembrar: toxicidades cutâneas são frequentes nas terapias antineoplásicas e na radioterapia; radiodermatite aparece em algum grau na maioria dos pacientes.

O que um dermocosmético “onco-safe” precisa ter

1. Blindagem da barreira cutânea.

Pense em fórmulas ricas em emolientes/oclusivos: manteigas (karité, manga) e óleos vegetais (girassol, prímula, linhaça, amêndoas, jojoba) para reduzir TEWL e suavizar fissuras. Há respaldo para o uso de emolientes com lipídios fisiológicos (ceramidas, ácidos graxos, colesterol) na restauração da barreira. Dica prática: texturas waterless (bálsamos) funcionam muito bem em xerose severa.

2. Hidratação inteligente.

Combine umectantes (glicerina, ácido hialurônico) com lipídios estruturais (ceramidas) para hidratação duradoura e reparo do estrato córneo. A niacinamida também ajuda na síntese de ceramidas e na função de barreira.

3. Microbiota cutânea em paz.

A pele fragilizada perde diversidade microbiana e fica mais suscetível a inflamação e infecção; portanto, probióticos/postbióticos tópicos e ingredientes que não desorganizem a flora (sem perfumes e conservantes agressivos) fazem sentido. Revisões recentes e consenso em dermocosmética oncológica apontam para rotinas hipoalergênicas e o uso de ativos que favoreçam o equilíbrio do microbioma. (Tradução: cuide da “vizinhança” da pele.)

4. Fatores de crescimento? Há estudos sugerindo benefício de EGF tópico na radiodermatite, mas o corpo de evidências ainda é pequeno e precisa ser confirmado; use com critério e alinhado à equipe oncológica.

5. Lista negra de irritantes. Evite fragrâncias, álcool alto, sulfatos (SLS/SLES), corantes, esfoliantes agressivos e “ativos antiacne/antienvelhecimento” que descamam. Menos é mais — e mais seguro.

Por que tudo isso importa?

Porque pele trincada + barreira desmontada + microbiota bagunçada = porta aberta para dermatoses oportunistas (infecções, eczemas, fissuras dolorosas) em um momento de imunossupressão. Proteger, reforçar a barreira e favorecer a microbiota reduz sintomas e previne complicações que atrasam ou interrompem o tratamento — e ninguém quer brigar com o cronograma da quimio por causa de um hidratante mal escolhido.

Em resumo (com meu carinho clínico e zero perfume):

– Base lipídica generosa: manteigas e óleos vegetais de alta tolerância.

– Barreira reforçada: ceramidas + niacinamida + umectantes clássicos.

– Microbiota respeitada: fórmulas hipoalergênicas, sem fragrância, com foco em equilíbrio microbiano.

– Zero pirotecnia: nada de ácidos esfoliantes fortes, retinoides potentes ou fragrâncias “para disfarçar o cheiro da química”.

– Uso criterioso de EGF e afins: potencial promissor, mas converse com o oncologista.

Há uma multidão de mulheres atravessando a quimio hoje no Brasil, e a pele delas não precisa ser mais um campo de batalha. Precisamos de produtos específicos, seguros e eficazes — menos glitter, mais ciência. E, por favor, sem cheiro de lavanda “calmante”. A única coisa que a pele quer nesse momento é lipídio, água, silêncio e respeito.

Natasha Mayer

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