Os acordos de delação premiada, que voltaram ao debate político no país com a colaboração firmada pelo ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), deixaram um rastro de queixas e até de arrependimento por parte de seus participantes na Lava Jato, operação na qual esse tipo de compromisso foi um pilar das investigações.
Alvos de peso da operação que assinaram os acordos anos atrás agora ou tentam rever as obrigações impostas no passado ou fazem críticas às circunstâncias da época em que aceitaram colaborar com as autoridades. Nessa lista, estão ex-executivos da empreiteira Odebrecht, políticos e até um dos pivôs da operação, o doleiro Alberto Youssef.
Um advogado que defendeu réus no escândalo na Petrobras afirmou à reportagem que os acordos tinham sido firmados dentro de uma ideia de que os processos eram regulares, mas que hoje se tem ciência de possíveis irregularidades que “lá atrás não se tinha”.
A Lava Jato sofreu uma série de desgastes nos últimos anos, como a revelação de conversas no aplicativo Telegram que mostraram colaboração e proximidade entre procuradores e o então juiz Sergio Moro.
Um dos primeiros acordos de colaboração da operação, o de Youssef, agora é alvo de protesto de sua própria defesa, que questiona se a iniciativa de colaboração foi mesmo espontânea.
Para isso, os advogados tentam explorar um episódio de gravação de conversas na carceragem da PF em Curitiba, que consideram não ter sido devidamente esclarecido. Também foram ao STF com um pedido de providências acusando o ex-juiz Moro, hoje senador pela União Brasil-PR, de intromissão indevida no caso das escutas —o que o parlamentar nega.
Fora do regime fechado desde 2016, o delator ainda precisa usar tornozeleira eletrônica.
O acordo do doleiro foi firmado em plena campanha eleitoral de 2014 e incendiou o clima político do país em situação que de certa forma lembra o ocorrido neste mês com Mauro Cid. O ex-ajudante de ordens de Bolsonaro teve sua delação homologada no último dia 9 pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
A medida criou expectativa em Brasília sobre eventuais relatos envolvendo o ex-presidente, que é investigado em diferentes frentes, como em inquérito sobre a venda no exterior de joias presenteadas à Presidência.
Cid chegou a relatar à PF uma consulta feita por Bolsonaro a militares da alta cúpula na época sobre uma minuta de golpe após as eleições.
A delação de Cid foi assinada após ele ter ficado quatro meses preso por ordem de Moraes. Críticos dos mecanismos de colaboração premiada afirmam que essas circunstâncias estimulam relatos pouco consistentes.
Na Lava Jato, as tentativas de rever os compromissos ocorrem em meio à completa mudança de cenário na operação. Antes, as prisões preventivas (sem prazo determinado) impostas a partir de Curitiba eram referendadas por outros tribunais, e um acordo de colaboração acabava sendo encarado como a via mais rápida para deixar o cárcere.
Hoje, com a derrocada da Lava Jato e o fim da prisão de réus condenados em segunda instância, a possibilidade de voltar ao cárcere é exígua, mas as obrigações dos acordos, como restrição de direitos e pagamento de multas, permanecem.
O marqueteiro João Santana, por exemplo, fechou acordo de delação em 2017 e ainda precisa cumprir serviço comunitário. Até 2032 ele e a mulher terão obrigações como apresentar à Justiça relatórios de atividades desenvolvidas. À Folha, em maio, ele se referiu à investigação como uma “cruzada de absurdos que foram cometidos contra mim”.
Segundo o Ministério Público Federal, foram firmados só em Curitiba 209 acordos de colaboração premiada desde que a operação foi deflagrada, em 2014.
Com o passar do tempo, mais delatores passaram a vir a público para se queixar das autoridades da operação, como o ex-ministro petista Antonio Palocci e o ex-deputado federal do PP-PE Pedro Corrêa.
Em maio, advogados de Palocci informaram à Vara Federal de Curitiba sobre a disposição dele de falar sobre “erros da Lava Jato”, contribuir para um sistema de Justiça “mais garantista” e detalhar o contexto em que optou pela delação.
O pedido de audiência chegou a ser aceito pelo juiz Eduardo Appio, crítico dos métodos da Lava Jato e hoje afastado do posto, mas o depoimento acabou não acontecendo por ordem da segunda instância.
Na fila das reclamações sobre a delação premiada também está o ex-deputado federal pelo PP-PE Pedro Corrêa, que ficará em prisão domiciliar até fevereiro de 2024. O ex-parlamentar fez descrição sobre irregularidades que inclusive consta na famosa sentença do caso tríplex, que levou o hoje presidente Lula (PT) à prisão em 2018.
Também envolvido em antigos processos do atual presidente, o empresário Emílio Odebrecht encontrou outra maneira de mostrar sua indignação com o acordo de colaboração: publicou neste ano um livro chamado “Uma Guerra contra o Brasil”, no qual relatou que havia “insuportável sofrimento físico e mental” imposto por autoridades da operação, e que “poucos conseguiram resistir”.
Emílio, que não chegou a ser preso, chamou a Lava Jato de “fábrica de delações” e disse que, quem não oferecesse relatos de relevância era ameaçado com prisões e processos.
O ex-procurador Deltan Dallagnol ironizou em maio nas redes sociais as declarações de Emílio e publicou vídeo em que o empresário dá risada durante depoimento.
Outro dos delatores da Odebrecht, Alexandrino Alencar, que era tido como elo da empreiteira com Lula, fez relato em documentário lançado em 2022 no qual disse: “Era uma pressão em cima da gente. E aí estava nítido que a questão era uma questão com Lula. Queria saber do irmão do Lula, do filho do Lula, palestras do Lula”.
Também fala que houve manipulação para delação o ex-governador do Rio Sérgio Cabral. Réu da Lava Jato que ficou mais tempo detido —seis anos ao todo—, ele firmou um acordo de colaboração diretamente com a PF.
Seus depoimentos, homologados pelo STF no início de 2020, traziam acusações inclusive ao ministro Dias Toffoli. Porém o Supremo decidiu, em 2021, declarar inválida a colaboração. O caso do ex-governador foi relembrado pelo procurador-geral Augusto Aras, após a delação de Mauro Cid, como um exemplo negativo de um acordo sem participação do Ministério Público.
Em entrevista à Folha em março, Cabral disse que firmou o compromisso porque estava “completamente arrasado”.
“Já estava há quase três anos preso e fui manipulado. Graças a Deus o Supremo tornou ela inválida. Reitero aqui o pedido de desculpas às pessoas citadas.”
Delatores também resolveram peticionar no procedimento aberto em 2020 no STF pela defesa do presidente Lula, no qual o mandatário obteve cópias de mensagens hackeadas de procuradores e a invalidação de provas da Odebrecht.
Foram os casos do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró e do empreiteiro Salim Schahin, que agora acusam as autoridades da operação de irregularidades.
A defesa de Cerveró disse que práticas adotadas na Lava Jato “estão em xeque” e que as mensagens mostravam “conluio institucionalizado e perene do ex-juiz Moro e membros da força-tarefa”.
A acusação de combinação ilegal é negada pelas autoridades da operação, que dizem não reconhecer a autenticidade das conversas hackeadas.
A equipe do Ministério Público também sempre negou que tenha havido irregularidades nos procedimentos de negociação de delações. Repetiu com frequência que os acordos previam a obrigação dos participantes de dizer a verdade, sob pena de rescisão e perda dos benefícios concedidos.Fases da Operação Lava Jato no Paraná
*Com informações da Folha de S.Paulo
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