Era um hábito, na Manaus dos anos cinquenta a sessenta “passar o dia” na casa de um parente ou amigo. Esse termo foi extinto na sua verdadeira essência afetiva. É uma expressão em desuso e desconhecida para as gerações atuais.
É necessário expor no museu da memória o esqueleto desse espécime que habitou nosso meio antes que a hecatombe desenvolvimentista o dizimasse por completo.
“Passar o dia” tinha a conotação de um passeio, de um prazer, de uma aventura, de uma viagem (pequeníssima viagem, sem dúvida!) e principalmente de partilhar das horas rotineiras da vida do parente ou do amigo.
Em geral, “passava-se o dia” durante as férias escolares. Não tínhamos televisão, nem jogos eletrônicos. Viagens para outros locais? Somente para os mais aquinhoados financeiramente.
Inexistiam crediário e as facilidades de compra no comércio, como a das passagens aéreas, tão bem-vindos no hoje. Por isso, viagens somente nos livros de aventuras infanto-juvenis.
“Passar o dia” era a viagem ansiada executada dentro do espaço geográfico chamado Manaus. Às vezes, a curta distância de sua própria residência, mas os limites, esses eram delineados pelo afeto e pela hospitalidade.
Dizem que o coração tem o tamanho de nosso punho fechado. Resolvo então abrir meu punho! E dele escapam tantas coisas! Como a idéia de “passar o dia” na Manaus dos anos cinquenta e sessenta.
Idéia para muitos absurda, mas para mim a memória tem o poder do sopro do Gênesis. Anima o barro; dá vida ao pó e ao nada. Assim, revisito Manaus.
Passo não só o dia, mas as férias e os feriados da cidade, não sem antes preparar a pequena valise vermelha e nela colocar roupa de passeio e de dormir, toalha e traje de banho, pasta dental, escova de dentes e de cabelo e a boneca negra de pano (comprada na livraria Acadêmica) para o caso de sentir-me só.
As férias e os feriados de Manaus tinham muito de magia, religião, espiritualidade, civismo, folia momesca, folguedos juninos e criatividade, muitíssima criatividade, além da presença das angélicas incensando o agosto de meus anos.
Sim, as angélicas faziam parte do dia a dia manauense. Enfeitavam altares e casas e festas e lápides com seus caules finos e longos de onde emergiam seu branco florir. E ao alcance de todos os bolsos. Depois da hecatombe desenvolvimentista cederam suas cotas de emoções ao requinte e a fidalguia das rosas.
O homem, preocupado em tocar o infinito não mais entendeu a linguagem das angélicas. Nas férias escolares, não se tinha muito o que escolher.
Ou o rio, de venerável ancianidade, ou os cinemas, ou os passeios nas praças, ou a doçura dos “caramujos” da Confeitaria Avenida, que um dia o Criador levou de volta ao paraíso.
O Rio Negro todo para banhar-se! Com seus mil braços límpidos e sinuosos rasgavam o ventre urbano e desafiavam os “moleques” a pular do alto das pontes romanas que ladeavam o Palácio Rio Negro.
Nos “banhos” públicos, Parque Dez de Novembro, Ponte da Bolívia, Tarumã, Ponta Negra; Nos balneários particulares, Guanabara, Las Palmas, Muruama, Fale Baixo, Acarape,; nessas águas, benditas águas, abri novamente meu punho e aí depositei a ingênua esperança da perpetuidade.
Nos passeios nas praças da Polícia, da Saudade e do Congresso tinha-se a convicção de não esbarrar em tendas beduínicas.
Mas foi num daqueles bancos de pedra que um dia ficou esquecido o compêndio de urbanidade de uma cidade-sorriso.
Os cinemas Avenida, Odeón, Polytheama, Guarany, Éden, Ipyranga, Palace, Vitória, Ideal e Popular, davam o roteiro dos sonhos e com isso a crença no futuro de uma Manaus em technicolor.
Nas férias, não tínhamos muito o que escolher, mas ao abrir os punhos fechados dali, surgia todo o universo…
Carmem Nóvoa Silva
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