Naquele tempo dizia Manaus a seus filhos: “Nossa gente sempre usou, usa e usará para os serviços menores, mas dignos, as rústicas carroças”. Puxadas por cavalos de porte altivo ou por burricos. Assim ficou famoso (e rico!) o “Felipe Geleiro”.
Assim conheci seu Joaquim que nos fornecia carvão semanal quando os fogões e fogareiros e ferros de engomar tomavam, ciosos, conta de nossas casas. Assim eram as carroças e os carroceiros nos anos cinqüenta, sessenta, até rarearem no anos setenta.
Foram expulsos da vida cotidiana da cidade pelos ares progressistas de metrópole plena das benesses rutilantes e automáticas da Zona Franca e da proliferação dos carros pelas facilidades de financiamento e crediário.
E… quando dei conta não podia mais deixar a janela do carro aberta. Nem eu e nem a Norma Simões, a Fernanda Orofino, a Vânia Sabbá, algumas das mulheres pioneiras no ofício de lidar e suar com a
direção mecânica (duríssima), mas ali, estóicas na rota de descer e subir a Avenida (leia-se Eduardo Ribeiro).
Meu bem-aventurado leitor, de você será o reino dos céus já que na persistente leitura de minhas divagações e raciocínios.
Pois em verdade em verdade lhe digo: Devem retornar as carroças, os carroceiros e seus eqüinos. “Insana!” Diria o Rogélio Casado com propriedade. A Mônica Melo, afirmaria que o Detran precisa ministrar cursos aos donos desses tempos anacrônicos para demonstrar a impossibilidade do retorno das carroças em pleno século XXI.
Já eu, com a autoridade conferida por esses tempos dulcíssimos diria. O que não se pode admitir é o surgir de um novo e humilhante tipo de carroças. Sim, carroças! Você, meu leitor não vê esses homens à frente de uma espécie de carroça (feita de barras de ferro) puxando-a no lugar dos ditos eqüinos?
Carroças de hoje
Isso nas ruas e avenidas. Carregam tralhas, mesas, cadeiras, espelhos, quadros, vasos, penico e bidê… Tudo isso em condições sub-humanas. Não vêem esses homens puxando carroças de materiais recicláveis, sucata e papelão feito montanha? Prejudicam o trânsito já caótico e ninguém diz coisa alguma.
Nada tenho contra o trabalho honesto, mas entre a situação indigna e degradante de puxar como um burro (literalmente) uma carrocinha, advogo a causa não perdida do retorno das carroças e seus
tipos humanos tão bem descritos pelo Moacir de Andrade nos seus trabalhos memorialísticos.
Outorgaríamos dignidade ao ser humano. Ofereceríamos uma função aos animais. Afinal
burros, cavalos, e seus donos já tiveram momentos gloriosos.
Foi num burro que Jesus entrou em Jerusalém; foi num burro que Maria, José e o Menino fugiram de Herodes para o Egito; foi no cavalo “Rocinante” que D. Quixote conquistou La Mancha e Castela; foi num cavalo, o “Babieca” que El Cid mesmo morto ganhou a batalha; foi num burro que S. Francisco Xavier
foi às Índias, e Calígula tornou senador seu cavalo…
Temo que meu penitente leitor pense ser este artigo muito prolixo e lembre então de Plutarco contando o que os espartanos disseram sobre os longos discursos dos embaixadores de Samos: “Esquecemos o princípio de modo que não entendemos a conclusão”. Por isso dou por encerrado o assunto pois no princípio era o Verbo e o verbo era esse dulcíssimo tempo das carroças. Essa época em que a dignidade
humana era retratada mesmo no ofício simples mas não na condição humilhatória como a das
carrocinhas do hoje. Atreladas a bípedes tão racionais quanto à irracionalidade dos tempos
gélidos do hoje…
- Carmen Novoa Silva é membro da Academia Amazonense de Letras
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