A Justiça de São Paulo reconheceu a união estável entre três homens que formam um trisal em Bauru, no interior do estado. A decisão foi assinada no início de julho pela juíza Rossana Teresa Curioni Mergulhão e validou o contrato particular firmado por Charles Trevisan, Kaio Alexandre dos Santos e Diego Trevisan.

Mesmo com a proibição do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desde 2018 para o registro em cartório de uniões poliafetivas — que envolvem três ou mais pessoas —, a Justiça não impede o reconhecimento dessas relações por via judicial. Foi essa brecha que permitiu ao trisal formalizar a união.

Charles, que é autônomo e formado em direito, elaborou o contrato em dezembro de 2024 e autenticou o documento no cartório de Registro de Títulos e Documentos de Bauru. Na época, ele e Diego já eram casados. Pouco tempo depois, conheceram Kaio, que entrou no relacionamento com o consentimento do casal.

“Eu e Diego somos casados há quatro anos. Me descobri poliamoroso quando ainda estava com meu ex-marido e me apaixonei por outro cara. Mesmo estando num relacionamento, queria estar com os dois. Era amor pelos dois”, contou Charles.

Quando Kaio completou 18 anos, o trisal decidiu registrar a união. O cartório autenticou o documento, mas o oficial de Justiça questionou a legalidade do ato, pediu a anulação do registro e aplicou advertência à funcionária que reconheceu firma no contrato. O Ministério Público de São Paulo também sugeriu a anulação.

O trio, então, recorreu à Justiça para garantir a validade do documento. A juíza julgou favoravelmente, destacando que, nas relações particulares, “é permitido fazer tudo aquilo que a lei não proíbe expressamente”. Ela também explicou que a proibição do CNJ vale apenas para Cartórios de Notas e de Registro Civil, e não para o Registro de Títulos e Documentos (RTD), onde o contrato foi apresentado.

Com a decisão, o cartório cumpriu a ordem judicial e arquivou o procedimento. O Ministério Público não deve recorrer.

Burocracia que protege

Para a advogada Beatriz Leão, especialista em direito de família, o caso mostra como a estrutura cartorária, apesar de vista como burocrática, pode garantir direitos quando usada corretamente.

“O sistema registral é complexo, mas foi justamente essa complexidade que assegurou a união. É um bom exemplo de como o direito precisa evoluir para acompanhar novas formas de amar”, avaliou.

Ela explicou que, embora a união poliafetiva não tenha status de casamento ou entidade familiar, o contrato é válido entre as partes e, se estiver dentro das exigências formais, não pode ser barrado apenas pelo seu conteúdo.

União poliafetiva ainda enfrenta barreiras

O Brasil não possui dados oficiais sobre uniões poliafetivas. A Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo (Anoreg) explica que, como o CNJ proíbe esse tipo de registro nos cartórios competentes, não há estatísticas públicas sobre esses relacionamentos.

Segundo a advogada, a ausência de dados não se deve apenas à falta de legislação, mas também ao preconceito que ainda existe em torno do tema.

“O assunto ainda é tabu e, muitas vezes, corre em segredo de Justiça. Mas decisões como essa mostram que há caminhos possíveis”, concluiu Beatriz.

O CNJ foi procurado, mas não respondeu até a última atualização desta reportagem.

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