Por Juscelino Taketomi
Em Novo Aripuanã, terra de rio largo e promessa estreita, morava um comerciante respeitável chamado seu Auremir Palmares, homem de fé tão robusta quanto seu estoque de farinha, e devoto de Santo Antônio de Borba como poucos na bacia do Madeira. Não havia procissão em que o dito cujo não estivesse lá, suando com dignidade sob o andor, oferecendo joelho, coração e caixa de foguete.
Pois aconteceu que numa de suas andanças ribeirinhas, Auremir e seu velho barco de guerra — modelo ‘Titanic versão regional’ — enfrentaram uma tempestade daquelas que fazem até boto virar católico. O rio virou mar, o casco bateu em pedra escondida e, antes que a farinha virasse mingau aquático, Auremir caiu de joelhos na proa e, com as mãos em concha de promessa, gritou: “Santo Antônio de Borba, me tira dessa, pelo amor de Deus”.
Não deu tempo nem de o santo se ajeitar na nuvem. Uma onda apareceu do nada (provavelmente escalada pelo próprio santo) e jogou o barco em terreno seco, salvando farinha, tripulação e a reputação do piloto, que já estava quase a ponto de virar lenda, ou cadáver.
Chegando em casa para relatar a epifania náutica à esposa Maria, Auremir mal passou o batente e já deu de cara com o filho mais novo, curumim de poucos dentes, engasgado com uma espinha de jaraqui. A criança já havia ingerido mais banana que macaco em festa de aniversário e mais pirão que político em bufê de inauguração.
“Santo Antônio, socorre a gente de novo, pelo amor do Senhor”.
Dito e feito. O menino correu pro banheiro, vomitou a espinha como quem lança a última esperança no mundo e voltou à vida. Foi então que seu Auremir, homem de palavra, embora míope em logísticas, declarou solenemente: “Vamos soltar vinte caixas de foguete na procissão deste ano. Vinte, não uma a menos. Este santo é bicho ligeiro”.
Mas aí começa a parte em que o santo ajuda, mas o casal se complica todo. Maria achou que quem prometeu que comprasse, e Auremir achou que Maria que se virasse. E o tempo passou como sempre passa promessa de político: rápido e sem ser cobrada. Quando a viagem a Borba já estava em curso, o vexame se revelou: “Cadê os foguetes, mulher?”, ao que ela respondeu: “Ué, achei que era tu que ia comprar”.
Auremir estrilou: “Puta que pariu, Maria. Vê logo aí na cidade se tu não acha esse foguete, não quero confusão com Santo Antônio de Borba”.
Foi então que, movidos pelo medo de represálias celestiais, porque Santo Antônio de Borba tem fama de santo, mas é daqueles que anotam em caderneta, saíram em desespero por cada bodega da região. E ouviram respostas que variavam entre o medo e a superstição: “Deus me livre. Esse foguete é reservado pra Santo Antônio. Prefiro vender o fígado do que vender isso aí”.
No fim, acharam nove caixas. Nove. Para dois milagres. Era pouco. Era risco. Era sinal de que o céu podia chiar. E Auremir chiar, chiar, não chiava, mas suava. Suava o suor da consciência pesada de quem sabe que com Santo Antônio de Borba não se brinca. Dormiu mal. Rezou mais do que padre no retiro. E amanheceu preparado para o sacrifício, ainda que o sacrifício fosse ele.
Na hora da procissão, armou seu humilde gradeado de foguetório: três por três. Acendeu, virou-se de costas e pensou: “Tá pago, meu santo. Tá pago”. Mas não. O santo talvez tenha entendido errado. .
O foguetório foi incrível. O gradeado tombou e o disparo não foi para cima, mas para o lado, justo para o lado de seu Auremir, que foi alvejado por rojões como inimigo da pátria em desfile militar. A bermuda pegou fogo. A camisa virou tocha. Ele corria em círculos feito galinha de quintal após avistar o machado. Os fiéis gritavam, o andor tremia, as bandeirolas viraram labaredas. E, para completar o apocalipse coreográfico, o boi do leilão, bicho robusto e nervoso, saiu em disparada entre os devotos, distribuindo chifradas com a generosidade de quem paga promessa ao contrário.
No fim do dia, os danos foram contados: uma camisa, uma bermuda, oito devotos pisoteados e uma procissão que virou caso de estudo antropológico. O único saldo positivo? A lição.
Em Novo Aripuanã e arredores, ficou decretado em voz alta e letra miúda: Prometeu coisa pra Santo Antônio de Borba, cumpra. Nem que tenha que fazer vaquinha, romaria ou pacto com o fogueteiro do apocalipse. Porque esse santo é bom, mas não tem nada de bobo, nada de otário.

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