Por Juscelino Taketomi

Enquanto Belém se veste de verde para a fotografia global, as ruas vão sendo esfregadas com urgência, os buracos no asfalto ganham tapetes provisórios e a cidade se enche de faixas que prometem um “futuro sustentável”.

Tudo pronto para a grande encenação: a COP30, o megaevento onde o Governo Federal exibirá seu catálogo de boas intenções, ao tempo em que, nos bastidores, a máquina estatal patina em solavancos, longe de ser o Estado moderno, tecnológico e eficiente que a transição ecológica exigiria.

Longe dos holofotes e dos discursos ensaiados, uma conversa cheia de indignação acontece no andar de cima da floresta que ainda teima em existir. É um diálogo entre dois condenados, separados por rios e estradas, mas unidos pelo mesmo esquecimento.

De um lado, no estreito corredor de mata entre um condomínio de luxo e um shopping center em Manaus, o Sauim-de-Coleira ajusta seu fraque desbotado. Ele é o maestro de uma orquestra fantasma, prestes a reger uma sinfonia para ouvidos surdos.

Do outro, num quadrado de floresta cercado por pasto e soja no Pará, o Cuxiú-Preto — intelectual de cabeleira ruiva e olhar de quem já leu seu próprio obituário — mastiga um fruto ressequido.

— Ouviram falar — pergunta o Cuxiú, com a voz rouca de quem já não espera resposta — que vão realizar um evento bilionário em Belém para salvar a gente?

O Sauim solta um guincho que é pura gargalhada amarga. — Salvar? Em Manaus, eu tenho lei municipal, meu rosto estampa placas de conscientização que ninguém lê. Sou o ilustre desconhecido, o problema elegante que se esconde atrás do ‘desenvolvimento’. Se a COP fosse em Manaus, os diplomatas passariam de carro blindado pela avenida que divide o que restou da minha casa, a caminho de discursar sobre ‘futuro compartilhado’. A ironia é tão grossa que daria para pavimentar uma nova rodovia.

Cuxiú-Preto – Foto: Reprodução

O Cuxiú balança a cabeça, com ar de quem já viu esse filme. — E eu sou o Chiropotes satanas, o ‘diabinho’ das estatísticas de extinção… Se eles falam em ‘transição ecológica’ em salas com ar-condicionado, saibam que minha família é encurralada a cada novo loteamento aprovado às pressas. Moderno é o drone que monitora o desmatamento, arcaico é a vontade política de impedi-lo.

Há uma pausa. O Sauim olha para o horizonte de concreto. — Nos transformaram em símbolos de um paradoxo: como pode um Estado que se quer digital e inclusivo ser tão analógico e excludente na hora de proteger o que é seu? Criaram Unidades de Conservação no papel, mas esqueceram de incluir ‘efetividade’ no orçamento. É transição a trancos e barrancos, e nós somos os solavancos.

— Exato! — revolta-se o Cuxiú. — Eles adoram a ideia da biodiversidade. É útil para fotografias, gera likes, enche relatórios. Mas a realidade — que exige frear o boi, barrar o grileiro, investir de verdade — é inconveniente. Preferem nos transformar em personagens de um documentário póstumo.

O diálogo é cortado pelo ronco de um trator que avança sobre a área do Cuxiú e pelo barulho de uma serra elétrica no fragmento do Sauim. Eles se entreolham, cada um no seu palco de resistência. Irmãos de sangue na invisibilidade.

A grande farsa, que nenhum deles comenta, mas que paira no ar quente da Amazônia, é esta: a COP30 será realizada em uma região que abriga dois dos primatas mais ameaçados do mundo.

Os mesmos representantes que discursarão sobre “salvar a Amazônia” ignorarão solenemente o colapso silencioso que acontece perto da COP. Porque é mais fácil citar o urso-polar — um astro global — do que encarar o Sauim e o Cuxiú, lembretes vivos de que o Brasil ainda é um Estado de faz de conta quando o assunto é transformar compromissos em ações.

Em novembro, na COP30, soarão os hinos de um futuro verde, entoados por um Estado que ainda não aprendeu a andar no século XXI. O Sauim-de-Coleira, o maestro sem plateia, e o Cuxiú-Preto, o filósofo sem editora, assistirão em seus camarotes de galhos.

O espetáculo do “futuro sustentável” seguirá, com direito a coffee break e canudinhos de papel. E lá fora, na floresta que some, dois artistas invisíveis prosseguirão ensaiando seu último ato, torcendo para que o aplauso final não seja, também, seu silêncio eterno.

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