(*) Gerfran Carneiro Moreira – (Juiz do Trabalho e Professor)

Existe uma percepção cotidiana, não exatamente comprovada cientificamente, que nos comunica serem as mulheres capazes de realizar várias tarefas simultâneas.

Daí meu espanto com a repercussão que algumas amigas, participantes desses grupos aleatórios de whatsapp, deram à notícia de uma colega minha, juíza do trabalho paulista, recentemente promovida a titular de vara e que, nesta mesma época, está concluindo o curso de medicina.

Fui ver que muitos desses sites de notícias jurídicas têm trazido essa matéria com teor que transita entre o crítico e o jocoso. Insinua-se, com alguma acidez, a possível incompatibilidade entre os horários em que a juíza exercia a jurisdição e aqueles em que ela cumpriria seus deveres de estudante.

Nas conversas dos grupos, informais por natureza, minha primeira reação foi sair em defesa “técnica” da colega. Logo eu, que nem sou adepto das “literalidades”… Mas me apeguei a um ponto que me pareceu lógico: se a colega foi promovida, seu serviço de juíza, naquele momento, só poderia estar em dia. Era um requisito para ser promovida. Não se pode presumir irregularidade alguma nas verificações que seu tribunal fez sobre sua atuação. Da outra parte, se ela, ao longo de vários semestres letivos, vem obtendo aprovação nas disciplinas do curso superior, não se pode pôr em dúvida seu desempenho acadêmico.

A dúvida, claro, é legítima: como alguém consegue compatibilizar duas atividades tão desafiadoras quanto a judicatura e estudos universitários de medicina, de presumida dificuldade? Não por acaso, existe uma visão algo glamurosa das atividades de juízes e médicos, ao ponto de quase todo mundo acreditar que sejam duas profissões que enriquecem as pessoas, o que, às vezes, me faz pensar que alguma coisa deu errado comigo…

No começo, eu mencionei que a minha conversa foi com amigas. Sim, o debate foi com mulheres da minha convivência. Quis saber das colegas de grupo se elas não têm a experiência cotidiana de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Afinal, para o bem e para o mal, inventaram as tecnologias que nos permitem falar ou teclar ao celular com várias pessoas ao mesmo tempo. Nos tempos atuais, dessa forma, não parece impossível fazer tantas coisas ao mesmo tempo.

E fui pensando… Se eu, um “não-mulher”, escrevo este artigo entre audiências complexas; se, entre despachos, oriento a empregada doméstica e, se já aconteceu de, em pleno expediente forense, dar um jeito de salvar o carro da minha filha de ser guinchado na faculdade, que surpresa haveria na “multifuncionalidade” feminina?

Vieram mais pensamentos. Todos nós sabemos de muitas histórias que envolvem as mulheres e os seus desafios, como responsáveis pelo cuidado de outras pessoas, por exemplo, bem como nas tarefas infinitas marcadas pela desigualdade de gênero: gerenciar filhos e coisas do lar. Foi aí que lembrei de dizer às amigas o seguinte: por acaso, um “marido-mala”, aquele que larga os filhos para beber cerveja e jogar bola no fim de semana, o que é (ou se finge) incapaz de lavar um copo, o que larga as toalhas e roupas sujas pela casa – ora, uma praga dessas não é mais difícil de administrar do que uma faculdade de medicina?

Não sei da vida da colega paulista, mas vai que ela tem uma rede de ajuda e cuidado ao seu redor. Um colega de trabalho, uma equipe, um companheiro ou companheira, colegas da aula… Não sei.

A vida toda eu segui o mantra de que as melhores pessoas para pedir ajuda são aquelas mais ocupadas. Com perdão dos desocupados convictos, são as pessoas ocupadas – parece – as mais capazes de aumentar a produtividade. Eu não espero de um ocioso a disposição para cursar medicina. Não mesmo.

Só muito gosto pela intriga justifica censurar alguém que estuda e trabalha. Durante uma quase eternidade, mulheres nem estudar podiam. Médica? Juíza? Só de algumas gerações para cá essas flexões para o feminino se impuseram. Antes de presumir o mal e de sermos maus, nossa primeira reação seria a de admirar alguém, que se deve presumir uma mulher brilhante, e pode ser as duas coisas.

Surpreende-me muito que a censura social venha de … mulheres. Essa, a meu ver, é mais uma fábula sobre o quão difícil é a condição feminina. Não sei se uma tal polêmica atingiria um homem. Nem sei se muitos homens teriam a energia suficiente para encarar tanto esforço. Duvido.

Juiz do Trabalho Gerfran Carneiro Moreira, da 4ª Vara do Trabalho de Manaus