(*) Farid Mendonça Júnior e Cynthia Rocha Mendonça
O avanço dos feminicídios ao redor do mundo deve ser entendido não apenas como um fenômeno criminal, mas como um indicador brutal da crise civilizatória que enfrentamos. Os números recentes não deixam dúvidas: as estruturas sociais, institucionais e culturais falham de forma sistêmica na proteção das mulheres. E quanto mais avançamos em debates públicos, mais se revela que a violência extrema contra elas permanece alarmantemente em ascensão.
Na União Europeia, considerada uma das regiões mais desenvolvidas do planeta, os dados do Eurostat revelam que, em 2023, cerca de 4,1 mulheres por milhão de habitantes foram mortas por parceiros íntimos ou familiares, quase o dobro da taxa masculina nessas circunstâncias (2,2). A Letônia lidera esse triste ranking, com 17 mulheres assassinadas por milhão em 2022 e 2023, seguida pela Lituânia, com 10 por milhão, e pela Áustria, com quase 5 por milhão. Esses números mostram que nem sociedades com elevados índices de desenvolvimento humano estão imunes ao colapso da proteção feminina.
No mesmo bloco, mesmo países com taxas menores demonstram que o problema é profundo e difuso: Grécia registrou 1,8 por milhão, Espanha 2 por milhão e Países Baixos 2,3 em 2023. Apesar de serem índices relativamente baixos comparados aos de seus vizinhos, a própria União Europeia teve um pico de feminicídios em 2022, atingindo 4,4 por milhão. Essa estabilidade elevada indica que, mesmo com políticas avançadas, o continente não conseguiu reduzir de maneira consistente a violência letal de gênero.
Em contraste, no cenário global a ONU aponta que a região mais letal para mulheres e meninas é a África, com 30 feminicídios por milhão de pessoas, totalizando cerca de 22.600 vítimas em 2024. As Américas aparecem logo atrás, com 15 por milhão, seguidas pela Oceania (14), enquanto a Ásia registra 7 por milhão. A distribuição revela que o fenômeno é planetário e profundamente enraizado em desigualdades estruturais.
O relatório conjunto do UNODC e da ONU Mulheres reforça a dimensão global da tragédia: 83 mil mulheres e meninas foram mortas intencionalmente em 2024, e 50 mil foram assassinadas por parceiros íntimos ou familiares. Isso equivale a uma morte a cada 10 minutos, ou 137 vítimas por dia no âmbito doméstico.
Em termos proporcionais, as estimativas também apontam disparidades gritantes: a maior taxa de feminicídios domésticos está na África, com 3 por 100 mil mulheres e meninas, seguida das Américas (1,5 por 100 mil), Oceania (1,4), Ásia (0,7) e Europa (0,5). Esses indicadores mostram que quanto menor a proteção institucional e social, maior o risco de morte para mulheres.
No Brasil, os números também escancaram a escalada da violência. Segundo o Mapa Nacional da Violência de Gênero, somente no primeiro semestre de 2025, foram registrados 718 feminicídios, quase 4 mulheres mortas por dia. No mesmo período, houve 33.999 estupros contra mulheres, uma média de 187 por dia, revelando a persistência de ciclos contínuos de violência que muitas vezes culminam em feminicídio.
Esses números indicam que a violência contra a mulher não opera de forma isolada: ela se estrutura em uma cadeia que vai desde abusos psicológicos e controle coercitivo até agressões físicas e, em seu ponto extremo, o assassinato. Como destaca a ONU Mulheres, muitos feminicídios são precedidos por comportamentos de controle, ameaças e assédio, inclusive o digital, uma forma de violência em rápido crescimento e que frequentemente se traduz em violência offline.
Frente a essa realidade, diversos países têm adotado legislações mais duras. A Itália aprovou prisão perpétua para casos em que o feminicídio decorra da recusa da mulher em iniciar uma relação ou aceitar restrições à sua liberdade. A França apresentou um pacote com mais de 50 medidas de combate à violência doméstica, motivada pelo aumento de 11% nos ataques mortais entre 2023 e 2024. A Espanha e a Bélgica também inovaram ao incorporar o conceito de violência indireta, que inclui perseguição, intimidação e controle financeiro.
Ainda assim, nenhuma legislação, por mais avançada, será suficiente sem um tecido social capaz de proteger mulheres antes que a violência se torne irreversível. No Brasil, especialistas apontam a necessidade de articular políticas de Estado, fortalecer redes de apoio e integrar delegacias, Ministérios Públicos e demais órgãos, para garantir resposta rápida e eficaz às denúncias das mulheres, muitas vezes ignoradas até que se tornem estatística fatal.
Diante desse panorama, a conclusão é inequívoca: enquanto os feminicídios sobem, a civilização desce. Cada assassinato é uma falência coletiva, um testemunho de que normas sociais arcaicas e estruturas de poder desiguais ainda moldam comportamentos e decisões. A violência letal contra mulheres não é um desvio, é o sintoma extremo de uma sociedade que ainda não reconhece plenamente a humanidade feminina. E enquanto os números continuarem a crescer, não haverá progresso verdadeiro que possa ser celebrado.

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