(*) Gerfran Carneiro Moreira – Juiz do Trabalho e Professor
Já faz mais de três décadas que estou no ofício das leis. É tempo suficiente para delas mais duvidar do que nelas ter fé.
Não contive uma gargalhada, algo sarcástica, claro, quando li a Lei 15.263/2025, a que Institui a Política Nacional de Linguagem Simples nos órgãos e entidades da administração pública direta e indireta de todos os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Comentei na aula. Um aluno, então, perguntou se eu era contra a lei. Ora, quem sou eu para ser “contra ou a favor” de uma lei? Eu hein… Muito pelo contrário… (E mais risos.) Eu só não acho que essa seja uma lei para funcionar, o que, a propósito, nem representa uma novidade no universo jurídico. Há, desde sempre, leis que “pegam” e leis que “não pegam” – é a sabedoria popular.
Mas eu nem quero falar muito da lei. O que me instiga mais é tentar compreender quem teria inventado a “linguagem complicada”.
Quando aprendemos a língua materna, absorvemos rápida e objetivamente suas estruturas sintáticas. Não é o caso de sair eu aqui a falar de Chomsky etc, mas esse é um aprendizado que realmente parece inato. Um pré-escolar é capaz de se fazer compreendido em qualquer ambiente. Aliás – e aí eu até adianto alguns de meus pontos de vista – meu sobrinho de quatro anos pode ser mais claro que um político contemporâneo ou um advogado de petições quilométricas. Mas, o que faria, então, uma criança transformar-se num adulto de linguagem obscura?
Dia desses, eu desafiei meus alunos a traduzirem o seguinte diálogo fictício:
– Oi, mana, tu tá sabendo da Maria?
– Não. O que aconteceu?
– Ela conheceu um rapaz nas férias. Ela restou com o mesmo e agora encontra-se em estado gravídico.
É óbvio que ninguém fala assim na vida real. Somos diretos e simples… A Maria ficou com o rapaz (com ele) e tá grávida.
Para alguns seres humanos, contudo, um fenômeno ocorre quando chegam a um lugar – idiomaticamente perigoso – chamado faculdade de direito.
Antes desse estranho instante, mesmo alguns dos que leram Machado de Assis, ícone da linguagem simples e, ao mesmo tempo, sofisticada, parecem sofrer mutações mentais e começam a “acostar” sua “exordial” nos autos “em epígrafe”, para, no fim, “aduzir” que “restou” provada a culpa do “ex-adverso”. Por que isso acontece? Um mistério…
Eu especulo que, num dia qualquer da história, escolásticos de uma dimensão que não mais existe estabeleceram que a linguagem dos “doutores” (da lei e de outras áreas) precisaria ser diferenciada, aristocrática e incompreensível para o público leigo (eu ia dizer “linguagem hermética”, mas me contive). Daí o esforço de rebuscar a comunicação e o surgimento dos vários jargões. Isso talvez explique, também, a “letra de médico”, o “economês” e o esforço brega de muita gente que mescla, sem critérios, estrangeirismos em textos e discursos.
O problema é que a boa comunicação, hoje, precisa ser inclusiva e acolhedora. Isso é exigência natural de um ambiente democrático, mas, também, até das próprias demandas capitalistas. Ora, como é possível vender meu produto sem ser claro? Como convencer meu interlocutor de que minhas ideias e projetos são bons, se eu não usar uma linguagem adequada, criativa e persuasiva?
Neste sentido, se, um ou dois séculos atrás, era possível ser bom juiz ou advogado falando “para dentro”, isso, agora, não faz mais nenhum sentido. Eu diria que essa linguagem rebuscada e complexa é, sobretudo, cafona e deselegante.
A leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas – obra que, por gosto e exemplo, sempre lembro – revela um texto delicioso e elegante, no ritmo, nos períodos curtos, parágrafos concisos e capítulos breves. Machado de Assis – não canso de dizer – usa, por óbvio, um vocabulário rico e próprio de sua época, mas nele não vamos encontrar conectivos desnecessários, períodos de seis linhas ou orações subordinadas em cadeias infinitas. Acima de tudo, é um texto cuja leitura flui com graça, objetividade e divertimento até.
O confronto entre linguagem “simples” e linguagem “complicada” tem a ver com a noção básica de que só se escreve bem quando se escreve para o outro.
Estando fora de moda (infelizmente) as cartas de amor, perdeu-se, creio, a prática de escrever-se para agradar a pessoa amada. Todavia, para quem vive da palavra, como nós do Direito, seria necessário pensar nossas peças e despachos como cartas de amor: precisamos que os destinatários achem boas nossas mensagens. Qual é o sentido de peticionar ao juiz se não for para que ele goste, isto é, para que ele se convença do meu amor, digo, da pertinência da minha tese, dos meus argumentos? Ninguém vai conseguir isso sem clareza, sem concisão, sem precisão – não por acaso, requisitos subjetivos da petição inicial?
A lei da linguagem simples é boa. Ela só não vai conseguir operar nos cérebros dos destinatários se eles não se esforçarem para ler mais e melhor, para fazerem autocrítica, para revisarem seus textos, para jogarem fora seus “considerandos”, seus “mesmos”, seus “doutos” e seus “nestes termos pede deferimento”.
Ah, sim… Um aluno quis comemorar que, agora, ficou proibido usar “linguagem neutra”. Disse a ele que isso não é tão importante. Ninguém é proibido de falar nada… (E nem obrigado). Eu gostaria que fosse proibido dizer e escrever “haviam muitas provas nos autos” ou “houveram muitos problemas com o reclamante”. É feio e sem guarida na norma culta, mas quem quer falar fala – vou fazer o quê? Eu penso que o tema entrou na lei apenas porque – talvez – o uso da “flexão neutra” pode ser tido como um “complicador”. Nesse aspecto, é também uma regra sem grande impacto. Todes entendem.
O que vale mesmo é que cada um – especialmente nós das carreiras jurídicas – reflita sobre como se comunica, por que se comunica, para quem se comunica. Essa é a boa nova.

