Ka tücüna naina. Como advogada indígena e membro de um povo originário, é meu dever alertar sobre a realidade que enfrentamos: um genocídio silencioso e sistemático disfarçado de políticas conciliatórias e decisões jurídicas que, ao invés de proteger, perpetuam o extermínio físico, cultural e territorial dos povos indígenas. O Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da Constituição, tem falhado em proteger os direitos dos povos originários, especialmente nas questões do “marco temporal” e no reconhecimento dos nossos territórios.

Historicamente, os povos indígenas têm sido ignorados pelas instâncias de poder, que deveriam zelar por nossos direitos. A Constituição de 1988 reconhece nossos direitos territoriais e culturais, mas decisões judiciais desrespeitam esse reconhecimento, favorecendo interesses econômicos e políticos de grupos que buscam explorar nossas terras. O “marco temporal”, introduzido no julgamento de Raposa Serra do Sol (2009), vincula a posse territorial indígena à data de promulgação da Constituição, desconsiderando nossa história de resistência e vínculo com a terra.

Esse conceito ignora séculos de ocupação e luta contínua por nossos territórios, e sua adoção pelo STF prejudica ainda mais os direitos dos povos indígenas. O julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, envolvendo o povo Xoclengue e a Reserva Biológica do Sassafrás, exemplifica isso, pois pode afetar todos os povos indígenas do Brasil. Se o “marco temporal” for aceito, muitos territórios indígenas poderão ser considerados “não reconhecidos”, abrindo portas para ilegalidades, depredação e o desmantelamento de culturas indígenas.

Além disso, o desrespeito à Convenção 169 da OIT, que exige consulta prévia e livre aos povos indígenas antes de decisões que os afetem, tem sido ignorado pelo STF. A falta de diálogo real com as comunidades revela desrespeito pela autodeterminação indígena. O que está em jogo não é apenas uma disputa de terras, mas nossa existência como povos originários. O STF, ao tratar nossas demandas como obstáculos ao desenvolvimento, participa de um processo que ameaça apagar nossa identidade e perpetuar um genocídio disfarçado de legalidade.

O processo de “genocídio disfarçado” é uma tragédia iminente, construída por decisões jurídicas que ignoram o contexto histórico e cultural dos povos indígenas. Ao insistir no “marco temporal” e desrespeitar a Convenção 169, o STF agrava esse quadro. O julgamento não trata apenas de terras, mas da continuidade de nossa existência. As decisões tomadas agora determinarão se o Brasil fará justiça aos povos que aqui estavam antes dos colonizadores ou se continuará com o extermínio silencioso de nossas culturas e direitos.

A sobrevivência dos povos indígenas está diretamente ligada à nossa resistência a essas decisões. O STF tem uma responsabilidade histórica no futuro do Brasil e no destino dos povos indígenas. Ele deve reconhecer a urgência e gravidade dessa luta.

Bapo ikoni. Até a próxima pauta.

Inory Kanamari

(*) Inory Kanamari, primeira advogada indígena do povo kanamari. Está como presidente da Comissão de Amparo e Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB/AM, Vice presidente da Comissão Especial de Amparo e Defesa dos Povos Indígenas no Conselho Federal da OAB, atuou como Consultora  no projeto de tradução da Constituição Federal para a língua indígena nheengatu no Conselho Nacional de Justiça. Articulista da Revista Cenarium, ativista, poetisa, membra na ALCAMA ( Academia de Letras, Ciência e Cultura da Amazônia)

Leia mais: Indígenas Kanamari: A Luta Silenciosa de um Povo Esquecido