O assassinato do adolescente Fernando Vilaça, de 17 anos, brutalmente agredido por dois outros menores no bairro Gilberto Mestrinho, Zona Leste de Manaus, no último dia 3, teve motivação de injúria homofóbica, segundo a Polícia Civil do Amazonas (PC-AM). Embora Fernando nunca tenha declarado sua orientação sexual, a simples suspeita foi suficiente para desencadear a violência que tirou sua vida de forma precoce.

Manaus é a sexta capital mais perigosa do país para pessoas LGBTQIA+. A morte do jovem reforça a urgência de ações efetivas contra a homofobia no Amazonas, crime que mata até mesmo pela suspeita.

Segundo Valdecir Ferreira, pai da vítima, Fernando vinha sendo alvo de injúrias homofóbicas por parte de dois adolescentes que não eram conhecidos da família. Ao tentar entender a motivação, acabou sendo morto em um ataque violento.

“Ele saiu para comprar um pacote de leite na taberna. Aí aconteceu que um rapaz sempre xingava ele, mexia com ele, já vinha umas duas vezes acontecendo. Aí eles tiveram uma discussão, eles caíram pelo chão. […] Veio um covarde, primo desse rapaz, segundo informações, eu não conheço nenhum dos dois. […] Chegou esse outro, chutou na cabeça do meu filho, coisa que a gente não faz nem com um animal. Chutou, ele caiu, bateu a cabeça no muro. As informações falam que ele ficou desacordado, só tremendo. Aí um amigo meu pegou e ajuntou ele, mais o outro filho dele, colocaram no carro, e levaram”, contou o familiar.

O adolescente foi encaminhado ao Hospital e Pronto-Socorro Doutor João Lúcio Pereira Machado, onde passou por cirurgia, mas, devido à gravidade de seus ferimentos, acabou morrendo dois dias após o ataque, no último dia 5. O Instituto Médico Legal (IML) apontou que a causa foi edema cerebral, traumatismo craniano, hemorragia craniana e ação contundente.

Até o momento, a Polícia Civil do Amazonas apreendeu, na quarta-feira (9), um dos adolescentes envolvidos na agressão a Fernando e destacou a motivação do crime.

“A vítima já sofria injúria homofóbica, o que é apontado como a motivação do ato infracional. O adolescente foragido, responsável pelo golpe fatal, já havia sido expulso da escola por má conduta. Independentemente da orientação sexual, ninguém deve ser alvo de discriminação, como no caso em questão, embora a vítima nunca tenha se manifestado sobre sua sexualidade”, afirmou Guilherme Torres, delegado-geral adjunto da PC-AM.

O adolescente apreendido responderá por ato infracional análogo ao crime de homicídio qualificado por motivo fútil e será encaminhado à Unidade de Internação Provisória (UIP), onde ficará à disposição da Justiça. O segundo suspeito segue foragido, e as buscas para localizá-lo continuam.

Injúria homofóbica e violência histórica

Foto: Agência Brasil

O termo “injúria homofóbica” é utilizado quando a ofensa tem como objetivo atingir a dignidade ou o decoro da vítima com base em sua orientação sexual, ainda que essa orientação seja apenas presumida, explica a advogada criminalista, Goreth Rubim.

“É interessante nós ressaltarmos que temos hipóteses também que, apesar da vítima não ser homossexual ou não ser membro da comunidade LGBTQlPN+, e simplesmente o autor do delito presumir que a vítima faça parte dessa comunidade, simplesmente pelo seu jeito, pelo seu modo de se expressar, nós temos sim a configuração do crime de injúria homofóbica. Nesse tipo de crime é interessante nós destacarmos que em razão da luta da comunidade LGBTQIPN+, foi equiparado a injúria homofóbica ao crime de racismo”.

Esse tipo de crime de ódio tem raízes históricas na sociedade, refletindo padrões culturais que moldam comportamentos e promovem a exclusão de pessoas que fogem das normas socialmente estabelecidas, muitas vezes, por meio da violência.

“Os processos históricos acabam construindo a maneira como homens e mulheres agem, a maneira como cada pessoa expressa sua orientação sexual, também expressa suas relações, sua performance de gênero. […] Essa performance de gênero, acaba sendo visto, algumas vezes, como desvios daquilo que se espera socialmente. E esses desvios, essa noção de desvio só existe porque essa norma heteronormativa se impõe sobre a maneira como os outros corpos deveriam agir. Só para deixar claro que, de modo algum, eu concordo que seja um desvio, mas é nomeado por esse grupo hegemônico heteronormativo”, explica o sociólogo Israel Pinheiro.

Uma morte LGBT a cada 30 horas

Foto: Divulgação/Vanessa Galassi / CUT-DF

Os efeitos desse comportamento na sociedade brasileira ficam evidentes em dados que mostram a realidade enfrentada pela população LGBTQIA+ no país.

O “Observatório 2024 de Mortes Violentas de LGBT+ no Brasil”, publicado pelo Grupo Gay da Bahia — a mais antiga organização não governamental LGBT+ da América Latina, que realiza esse levantamento desde 1980 — destacou que o Brasil continuou, em 2024, como o país com o maior número de homicídios e suicídios de pessoas LGBT+ no mundo. Foram registradas 291 mortes violentas, 34 a mais que em 2023, o que representa um aumento de 8,83%. Na prática, uma pessoa LGBT+ é vítima de morte violenta a cada 30 horas no país.

No ranking elaborado pela ONG, o Amazonas ocupa a 12ª posição entre os estados com maior número de mortes violentas de pessoas LGBT+ em 2024. Considerando apenas as capitais brasileiras, Manaus aparece como a sexta mais violenta para a comunidade.

A presidente do Instituto da Diversidade LGBT+ do Amazonas, Bruna La Close, afirmou ao Em Tempo que viver no estado representa uma luta constante por direitos básicos para a população LGBT+. Segundo ela, essa batalha já se estende há 25 anos.

“A taxa de criminalidade do Amazonas por crime de homofobia é gritante e isso nos torna reféns de algo que deveria ser sinal de liberdade e orgulho. Então no dia a dia, ou você se mantém no padrão que a sociedade espera de você ou você é tratado de forma diferente, xingado, agredido”, disse a ativista.

Segundo ela, apesar das conquistas alcançadas na sociedade, ainda há situações que não foram plenamente atendidas pelas autoridades.

“São 25 anos de luta, então hoje nós temos todo o respeito e escuta das autoridades, isso não significa que a invisibilidade não esteja presente no sistema, mas nós continuamos lutando e buscando resistir”, ressaltou Bruna.

Repercussão nacional e pedido de justiça

Foto: Reprodução

O caso de Fernando Vilaça ganhou repercussão nacional após a deputada federal Érika Hilton (PSOL-SP) acionar o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) para acompanhar a investigação da morte do adolescente.

A parlamentar classificou o crime como “dilacerante” e “inaceitável”, reforçando que a atuação do Ministério é fundamental para garantir justiça. “Por conta de uma presunção, do ódio, da LGBTfobia e da violência alheia, Fernando não teve nem seu direito à vida respeitado”, declarou Erika Hilton.

Na terça-feira (8), o MDHC se manifestou e lamentou o ocorrido. “Tais atos atentam diretamente contra os fundamentos constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da liberdade, representando também crimes previstos em nossa legislação penal, incluindo o homicídio qualificado por motivo torpe e os crimes de LGBTQIAfobia, reconhecidos como formas de racismo pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26/2019”, diz o ministério.

A pasta reforçou o compromisso com a defesa da vida e dos direitos das pessoas LGBTQIA+ e com o enfrentamento à violência motivada por ódio, preconceito e discriminação.

“Nos solidarizamos com os familiares de Fernando Vilaça da Silva, colocamo-nos à disposição para acompanhamento do caso e informamos que os encaminhamentos cabíveis já estão sendo realizados junto à Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos. Fernando Vilaça da Silva não será esquecido. Toda forma de violência LGBTfóbica deve ser combatida com rigor e com políticas públicas estruturantes”, finaliza.

A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Amazonas também se pronunciou sobre o caso, enfatizando a preocupação com a onda de violência voltada a comunidade LGBT+ na capital amazonense.

“Em 2022, Manaus registrou o maior índice de mortes violentas à comunidade LGBTQIAPN+ no país, segundo dados do Observatório de Mortes e Violências LGBTI+, seguindo no topo da lista em 2023.
Esse ódio, execrado na figura de um adolescente, repleto de sonhos e vida pela frente, deve ser combatido das mais diversa formas e meios em torno de um pacto que envolva todas as esferas da sociedade, seja pública, civil ou privada”, sinalizou a comissão.

Conservadorismo e exclusão

Foto: Reprodução

Especialistas apontam que o crescimento do conservadorismo em Manaus pode estar relacionado ao aumento da violência contra a comunidade LGBTQIA+.

De acordo com o Censo de 2022, o número de evangélicos no Amazonas cresceu 52% em relação a 2010. O estudo “Violência contra LGBT – Resistência e Enfrentamento”, de Denis Pereira, destaca a influência de discursos religiosos e políticos na exclusão dessa população:

“Movimentos conservadores — patrimonialistas, punitivistas e religiosos — estão associados na construção de dispositivos que […] excluem os LGBT’s do status de cidadania.”

Israel Pinheiro reforça que o princípio da tolerância, valorizado por diversas religiões, também deve valer para a liberdade sexual.

“É importante que essa tolerância se aplique também para o direito que cada pessoa tem de exercer sua expressão de sexualidade”.

Sonhos interrompidos

Foto: Reprodução/Redes Sociais

Fernando foi morto por uma suspeita. Um crime de ódio que destruiu sonhos e deixou a família em luto.

“Ele tava cansado, realmente, dessas piadinhas desses dois rapazes. […] Só pedimos justiça, porque meu irmão não fazia mal a ninguém. Ele tinha o sonho pela frente, mas esses dois rapazes retiraram a vida dele”, disse Wellyngson Bob, irmão da vítima.

Apaixonado por animais, Fernando planejava tirar a carteira de habilitação ao completar 18 anos, contou sua tia Klíssia Vilaça:

“Ele era menino sonhador […] gostava muito de cuidar dos animais dele. Com o ‘Pé-de-meia’ comprava ração e juntava dinheiro pra tirar habilitação”.

Na escola onde estudava, colegas fizeram uma homenagem com cartazes pedindo justiça e denunciando o bullying.

Para Israel Pinheiro, é urgente a criação de políticas públicas que enfrentem a violência contra a comunidade LGBTQIA+:

“Políticas públicas são fundamentais: materiais sobre diversidade de gênero, educação sexual nas escolas, debate público sobre identidade. Todos esses elementos são essenciais para uma sociedade mais democrática”.

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