O espancamento de Juliana Garcia, flagrado por câmeras de segurança em um elevador na cidade de Natal (RN), reacendeu o alerta sobre a violência contra a mulher no Brasil. A jovem foi agredida com 61 socos pelo namorado, Igor Cabral, preso em flagrante após o crime. A brutalidade do caso e o simbolismo dos golpes no rosto chocaram o país.

Segundo especialistas, esse tipo de violência revela traços profundos do machismo estrutural e da visão de posse que muitos agressores mantêm sobre o corpo feminino.

Rosto como alvo: agressão que simboliza poder e domínio

De acordo com a promotora Valéria Scarance, do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), muitos agressores miram partes femininas do corpo — como rosto, seios e ventre — como forma de controle e humilhação. “É uma tentativa de marcar o corpo como propriedade”, explica.

A antropóloga Analba Brazão, do Instituto SOS Corpo, acrescenta que golpear o rosto também é um ato simbólico de poder. “É uma forma de desfigurar e anular a identidade da vítima”, diz.

A pesquisadora Télia Negrão, da UFRGS, destaca que muitos ataques visam destruir a feminilidade da vítima, com chutes na barriga ou mutilações em áreas genitais. “Essas violências carregam uma mensagem de ódio ao feminino”, alerta.

Feminicídios aumentam e escancaram falhas na proteção

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que, em 2024, o Brasil registrou 1.492 feminicídios — o maior número desde o início da série histórica em 2015. Isso representa quatro mulheres assassinadas por dia. Outros dados preocupantes:

  • 63,6% das vítimas eram negras
  • 70,5% tinham entre 18 e 44 anos
  • 80% foram mortas por companheiros ou ex-companheiros
  • 64,3% dos crimes ocorreram dentro de casa

Já os casos de tentativa de feminicídio chegaram a 3.870, aumento de 19% em relação ao ano anterior.

Violência segue mesmo com medidas protetivas

Entre 2023 e 2024, ao menos 121 mulheres foram mortas mesmo com medidas protetivas ativas. Para a promotora Valéria Scarance, isso mostra a urgência de ampliar a rede de proteção e garantir respostas mais efetivas do Estado.

Ela explica que muitos agressores agem motivados por sentimento de posse e insegurança. “Mulheres são atacadas por sorrirem, trabalharem, passarem batom. Qualquer atitude pode ser vista como provocação por esses homens”, afirma.

Misoginia e antifeminismo crescem com avanço da extrema direita

As pesquisadoras alertam para o crescimento do discurso de ódio e antifeminismo, impulsionado pela ascensão de ideologias de extrema direita. Para Valéria Scarance, o aumento da violência é uma reação ao avanço das mulheres na sociedade. Ela chama isso de “backlash” ou retaliação estrutural do machismo.

Analba Brazão reforça que o machismo se torna ainda mais violento quando mulheres conquistam mais autonomia. “Há um movimento organizado contra o feminismo e os direitos das mulheres”, diz.

Mulheres negras são as mais atingidas

A pesquisadora Dalvaci Neves, do Rio Grande do Norte, afirma que 80% das vítimas de feminicídio no estado entre 2013 e 2023 eram negras. A situação se agrava pela falta de delegacias especializadas: são apenas 12 em mais de 160 municípios.

Em todo o Brasil, segundo o Ministério da Justiça, existem apenas 488 delegacias especializadas no atendimento à mulher, e menos da metade (204) atendem exclusivamente esse público.

Educação e políticas públicas são essenciais

Télia Negrão destaca que, apesar de leis mais duras, a violência continua crescente. “Só com mudança cultural profunda, que começa na educação, será possível frear esse ciclo”, afirma.

Dalvaci defende que temas como gênero e racismo estejam no Plano Nacional de Educação, atualmente em debate no Congresso. “É nas escolas que precisamos começar a desconstruir o machismo e o racismo estrutural”, argumenta.

Ela reforça que denunciar desde os primeiros sinais de violência — mesmo que psicológica — pode salvar vidas.

Como denunciar violência contra a mulher

Mulheres vítimas de violência ou testemunhas podem denunciar por diversos canais:

  • Ligue 180: Central de Atendimento à Mulher. Gratuito, 24 horas por dia.
  • WhatsApp: (61) 9610-0180
  • Polícia Militar: Ligue 190, em caso de emergência
  • WhatsApp do Ministério dos Direitos Humanos: (61) 99656-5008

Por esses canais, é possível obter orientações sobre leis, direitos e unidades como a Casa da Mulher Brasileira, delegacias da mulher (Deam) e centros de referência.

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