Mais de um mês após a Justiça conceder regime de semiliberdade à indígena kokama violentada em uma delegacia no interior do Amazonas, ela continua isolada em um abrigo em Manaus. A permanência ocorre por ausência de manifestação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), responsável por supervisionar o cumprimento da medida prevista no Estatuto do Índio.
A mulher já possui as chaves da casa que recebeu do Governo do Amazonas, conforme acordo judicial, mas não pode se mudar sem um laudo técnico da Funai, que ainda não foi emitido. Enquanto aguarda, ela permanece afastada da família, mesmo com autorização judicial para viver com os filhos, mãe, padrasto e irmã, que enfrenta um câncer agressivo.
Situação agrava saúde mental e emocional da indígena
Na quarta-feira (10), a indígena esteve na sede da Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM), onde reiterou seu pedido de transferência para a nova moradia. Ela pretende acolher os filhos — um adolescente de 13 anos e outro de quase três anos —, a mãe idosa e a irmã, recém-operada, que está internada em um quarto de hotel por falta de estrutura familiar.
A irmã, de 27 anos, está em recuperação após cirurgia de retirada de órgãos como o útero e o reto. Ela usa sondas para se alimentar e realizar necessidades fisiológicas. A ausência de apoio institucional tem feito a própria indígena arcar com os custos do tratamento.
Funai impede cumprimento de decisão da Justiça
De acordo com o defensor público Theo Costa, a situação representa um grave retrocesso. “A decisão de semiliberdade, na prática, está sendo usada contra ela”, afirmou. A medida, prevista no Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973), exige supervisão da Funai, que não participou da discussão no momento da decisão judicial.
“Ela já tem para onde ir. Mas, por ausência de laudo da Funai, segue impedida de conviver com sua família. O Estado do Amazonas fez a parte dele, a Justiça decidiu, mas falta ação da Funai”, criticou Costa.
DPE-AM denuncia omissões e pede agilidade da Justiça
O defensor Roger Moreira, que acompanha o caso na área de Direitos Humanos, informou que a Defensoria notificou a Vara de Execuções Penais (VEP) no início de setembro sobre a situação emergencial da irmã da indígena e da disponibilidade da casa. No entanto, até agora, não houve decisão judicial.
“Nosso objetivo é garantir que ela possa cumprir o regime concedido e estar com sua família. A omissão da Funai e a demora do Judiciário criam um vácuo que agrava ainda mais o sofrimento”, afirmou Theo Costa.
Defensor público custeou parte das passagens da família
Sem apoio de órgãos federais, parte da família da indígena, que estava sob ameaça em Santo Antônio do Içá, está sendo trazida a Manaus com recursos do defensor Roger Moreira. “A Funai disse que ajudaria, mas não ajudou. O doutor Roger teve que pagar do próprio bolso. Eu estou cuidando da minha irmã, mesmo tendo uma casa pronta. Falta apenas o laudo da Funai”, relatou a indígena.
Moreira ressaltou que tentou resolver a situação por vias institucionais. “Mas burocracia não resolve a urgência de uma mulher que está longe dos filhos e com a irmã entre a vida e a morte. Não é só processo, é humanidade.”
Caso representa violação institucional e abandono
A Defensoria Pública do Amazonas já acionou o Ministério dos Direitos Humanos e a própria Funai para garantir proteção à família da indígena. Contudo, segundo Theo Costa, a Funai sequer compareceu ao local para verificar os riscos.
A indígena, que passou por graves abusos sob custódia estatal, reforça: “Eu só quero estar perto da minha família. A casa está pronta, meus filhos estão chegando. Só preciso de uma decisão para recomeçar”.
Entenda o caso
Ela foi presa em 11 de novembro de 2022, por sentença condenatória a 16 anos e 7 meses de reclusão por crime hediondo, ao buscar a delegacia para fazer uma denúncia de violência doméstica. Detida sem audiência de custódia, passou quase 10 meses na 53ª Delegacia Interativa de Polícia de Santo Antônio do Içá, onde sofreu estupros e tortura por agentes do Estado.
Mesmo lactante e com um recém-nascido, foi forçada a trabalhos externos em regime degradante. A Defensoria Pública acompanhou o caso desde o início e denunciou a situação ao Ministério Público, que resultou em investigações e denúncias contra policiais e um guarda municipal.
Perícias confirmaram os abusos físicos e sexuais. A situação levou à concessão do regime de semiliberdade, com moradia garantida pelo Estado e acompanhamento da Funai. No entanto, sem manifestação do órgão, a mulher permanece isolada e longe da família, agravando seu sofrimento físico e emocional.
(*) Com informações da assessoria
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