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Desmonte

Política de desmonte: ‘omissão’ do governo federal inflama crimes na Amazônia

Políticos do Amazonas comentam o descaso do governo federal com o setor e ativistas denunciam sucateamento

Arte: Ítalo Euclides Chris

Manaus (AM) – Ao longo dos anos, a Amazônia tem sido alvo do aumento de crimes ambientais que são acompanhados por ataques contra povos originários e grupos que vivem na região. Historicamente, o local é marcado por conflitos, no entanto, diante do desmonte de órgãos institucionais de fiscalização, mediado por políticas de esvaziamento e sucateamento de pastas pelo governo federal, houve a escalada da morte e da violência, assim como da degradação ambiental.

Nos últimos dias, o mundo conheceu a realidade cruel da região do Vale do Javari, localizado no extremo oeste do Amazonas, na fronteira com o Peru. O indigenista e servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai) Bruno Araújo Pereira e o jornalista inglês e correspondente do The Guardian Dom Phillips estavam, há mais de 10 dias, desaparecidos. Na noite desta quarta-feira (15), a polícia federal confirmou a morte de ambos.

O caso brutal de violência que tirou a vida de dois homens dedicados ao trabalho em defesa da Amazônia reflete os diversos crimes que avançam no território. Conforme o deputado Zé Ricardo (PT), as ações do governo federal implementam, desde de seu início, uma política de desmonte de estruturas públicas de fiscalização ambiental, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) e de mecanismos que garantam a proteção dos povos indígenas, como a Funai.

“Então, você vê a Funai sucateada com redução de funcionários, com falta de investimentos. Há a paralisação das demarcações de terras indígenas, que amplia os conflitos, e a morte e violência contra os indígenas e suas lideranças. Você vê o Ibama que foi desmontado do Amazonas, e no interior do estado praticamente não existe mais. Está totalmente sucateado e seus funcionários desvalorizados”,

explicou o deputado.

Dessa forma, para o deputado, sem a atuação do estado em inibir crimes como o garimpo, a mineração e a pesca ilegal, a impunidade se alastra em unidades de conservação e em terras indígenas da maior floresta tropical do mundo. No caso do garimpo ilegal, houve um avanço de 46% da atividade na Amazônia, entre os anos de 2020 e 2021, segundo os dados da pesquisa realizada pelo Instituto Socioambiental (Isa) e da Hutukara Associação Yanomami.

Já o desmatamento por mineração na região cresce em ritmo alarmante:  em número recorde, a mineração causou o desflorestamento de aproximadamente 125 km² da floresta amazônica, um aumento de 62%, desde 2020 a 2021, conforme o relatório Cumplicidade e Destruição da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

O deputado também ressalta que servidores de carreira de órgãos institucionais que denunciaram as atividades ilegais chegaram a ser perseguidos, o que dificulta o trabalho de quem permanece no órgão.

“Portanto, hoje está muito facilitado, por parte do governo, atividades ilegais pelo fato de se omitir na fiscalização. Isso é muito grave porque as consequências estão aí, um aumento da violência. Esse agora de Atalaia com os assassinatos do indigenista Bruno e do jornalista Dom Phillips mostra exatamente que não há segurança, que há um descaso geral em relação a política indigenista”,

afirmou o deputado.

Em nota conjunta, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) e o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSB) lançaram uma nota, que aponta o desmonte das políticas públicas em curso.  

“O mundo sabe que este crime está diretamente relacionado ao desmonte das políticas públicas de proteção aos povos indígenas. Está diretamente relacionado também ao incentivo à violência por parte do atual governo do país”,

diz a nota.

Fiscalização

Para o deputado estadual Serafim Corrêa (PSB), uma das regiões mais vulneráveis ao crime é a fronteira da Amazônia. Segundo o parlamentar, a tríplice fronteira entre o Brasil, Colômbia e Peru não possui a presença efetiva do estado brasileiro, algo que conflita nos diversos crimes.

“Isso é algo que vem de muito tempo, mas nos últimos anos isso se aprofundou. Existindo a ausência do estado, um poder paralelo se impõe e, no caso é o narcotráfico, é o garimpeiro ilegal, madeireiro ilegal. É lamentável que tudo isso aconteça e nós defendemos que o estado brasileiro se faça presente para evitar que episódios como do Bruno e do Dom se repitam”,

declarou o deputado.

Em suas redes sociais, o senador Eduardo Braga (MDB) também alertou sobre a importância do estado se fazer presente na fiscalização em terras indígenas e em áreas de proteção da Amazônia.

“Nossas fronteiras não podem ser “terra de ninguém”. É preciso coibir o narcotráfico, proteger os povos indígenas e preservar nossa floresta e nossa fauna. Precisamos ampliar a fiscalização dos territórios da Amazônia e fazer vigorar a Lei. Proteger os indígenas, os ambientalistas e o povo caboclo e ribeirinho é uma obrigação do Poder Público. A preservação do Meio Ambiente passa pela segurança dos guardiões da Floresta”,

disse.

Insegurança

Conforme Eliesio Marubo, procurador jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), um dos grupos que atuou intensivamente nas buscas do indigenista Bruno Pereira e Dom Phillips, a violência contra eles não é exclusividade da região do Vale do Javari, mas se estende para outras comunidades indígenas da Amazônia. Para ele, a medida que a violência na área cresce, também acompanha o desmonte das políticas públicas pelo governo federal.

“No governo Bolsonaro, a gente teve essa desmonte mais efetivo porque não é prioridade do governo fazer e tentar tornar efetiva a política de fiscalização, por causa dos interesses que ele representa. O governo Bolsonaro representa exatamente o atendimento aos grupos que matam, que fazem um garimpo ilegal, aos grupos que vão contra essa política que é a proteção e o fortalecimento da fiscalização na Amazônia”,

afirmou.

Ao mesmo tempo, o procurador jurídico da Univaja disse ao Em Tempo que os recursos da Funai já estavam diminuindo nas últimas décadas. Porém, se tornaram ainda mais escassos no governo atual.

“Foi publicada uma nota por eles [governo federal] dizendo que investiu mais de R$ 10 milhões nos últimos três anos. R$ 10 milhões no órgão com a quantidade de servidores, com a quantidade de efetivos e uma logística extensa, isso não significa nada. Isso não significa nem 1% daquilo que deveria acontecer, então isso só reforça ainda mais o nosso pensamento de que a Funai e os órgãos de fiscalização, como o Ibama, não têm cumprido com a função que foram criadas”,

observou.

Para retomar efetivamente com a fiscalização, Eliesio esclarece a necessidade da criação de estruturas eficientes por parte de organizações do estado, como a criação de concursos para a contratação de mais servidores, e planejamento. No entanto, ao ser questionado pela equipe jornalística do Em Tempo se percebe uma movimentação de mudanças na fiscalização, ele respondeu de forma negativa e com apreensão.

“Até porque isso aqui [investigações do desaparecimento e assassinato] está acontecendo no calor do momento, com a morte do Dom e do Bruno, mas isso é passageiro. Daqui a uma semana já não vai ter mais nada de estrutura aqui não”,

concluiu.

Desmontes

Com o esvaziamento da Funai, integrantes do Instituto de Indigenistas Associados (INA), juntamente como o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) criaram o dossiê intitulado “Fundação anti-indigenista: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro”, lançado na última segunda-feira (13).

No documento, há uma série de apontamentos de práticas nomeadas como anti-indigenistas realizadas pela Funai, órgão criado com a função de proteger e auxiliar os povos indígenas, mas que tem cada vez se omitido de seu objetivo.

“A erosão por dentro da política indigenista se soma à de políticas como a ambiental, a cultural, a de relações raciais, naquilo que diferentes pesquisadores vêm demonstrando, por meio de noções como infralegalismo autoritário1 ou assédio institucional, 2 ser em verdade modus operandi do governo Bolsonaro”, diz o documento.

Entre as ações analisadas, o dossiê expõe a perseguição de servidores do órgão, a falta da demarcação de terras indígenas, e o emparelhamento da fundação, pela troca de funcionários antigos e com experiência por militares e policiais federais.

Em 2020, a Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente também publicou um dossiê que denuncia o desmonte do Ibama pelo governo Bolsonaro (PL).

“Elencamos pontos fundamentais que demonstram a narrativa de destruição e o repetido desrespeito ao arcabouço legal levados a cabo pelo Governo do Presidente Jair Bolsonaro e de seu Vice-Presidente Hamilton Mourão, recentemente nomeado Presidente do Conselho da Amazônia, e pelo auxiliar direto incumbido do desmonte, o Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, já condenado em primeira instância por crime contra a administração pública exatamente por desrespeito a instrumentos de gestão ambiental”, diz o texto.

Ipaam

Por exemplo, o IPAAM está sem concurso desde 2008, quadro de Fiscais reduzido. A Delegacia de Meio Ambiente não tem prédio próprio e com apenas oito investigadores. Batalhão Ambiental também não tem sede própria.

O Em Tempo entrou em contato com um servidor do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), que pediu para não ser identificado. De acordo com ele, a situação atual do instituto é de sucateamento. O quadro de fiscais está reduzido, e não há concurso desde 2008.

“A Delegacia de Meio Ambiente não tem prédio próprio e com apenas oito investigadores. Batalhão Ambiental também não tem sede própria”,

informou.

O presidente da Associação dos Servidores do Ipaam, e analista ambiental, Arivan Ribeiro, disse que o discurso do presidente Jair Bolsonaro inflama e incentiva a realização de atividades ilegais na Amazônia.

“Nos últimos três anos, graças a esse discurso pernicioso ao meio ambiente e o desmonte irresponsável das instituições de fiscalização, registra-se o aumento exorbitante do desmatamento criminoso no Amazonas”,

observou.

Segundo Arivan, em meio a esse discurso, exercer o papel de fiscal ambiental é um risco, e que muitas vezes precisam de escolta policial.

“E é justamente nesse cenário de desmonte e enfraquecimento nacional que se encontra o IPaam, com recursos financeiros e humano aquém da necessidade do maior Estado da Federação, detentor da maior floresta do Brasil. Atualmente, temos 56 analistas ambientais envolvidos nas atividades diretas do órgão ambiental; desses 56, apenas 10 analistas ambientais estão disponibilizados e envolvidos nas ações de ponta da fiscalização”,

contou Arivan.

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