Brasil — A cidade é Venâncio Aires (RS), a uma hora de Porto Alegre, historicamente tem uma das mais altas taxas de suicídios do Brasil. Foram nove óbitos e 38 tentativas só nos seis primeiros meses deste ano, sendo agricultores as vítimas mais comuns. O município gaúcho de 72 mil habitantes reflete um país que adoece mentalmente e acumula uma multidão de deprimidos e ansiosos e, consequentemente, de mortos.
O total de óbitos no Brasil por lesões autoprovocadas dobrou de cerca de 7 mil para 14 mil nos últimos 20 anos, segundo o Datasus, sem considerar a subnotificação. Isso equivale a mais de um óbito por hora, superando as mortes em acidentes de moto, por exemplo.
A curva vai na contramão do resto do mundo, mas segue a tendência da América Latina, de acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), que atribui a piora à pobreza, à desigualdade, à exposição a situações de violência e à ineficiência de planos de prevenção.
“Tudo é em forma de tentar sair da vida que a gente leva”, afirma Ana Paula da Silva, de 39 anos. Ela conta que tem episódios de automutilação e que tentou tirar a própria vida cinco vezes, relembrando uma infância de ausências: “Às vezes, a gente só tinha o almoço ou a janta”.
Começou a trabalhar aos 14 anos e se prostituiu nas ruas de Venâncio depois que perdeu o pai, alcoólatra. Também se rendeu à cocaína e à bebida. Hoje, sente-se melhor e tenta recomeçar com as rodas de conversa e a água quentinha do chimarrão de que gosta no Caps (Centro de Atenção Psicossocial).
O Rio Grande do Sul ocupa sempre o topo do ranking brasileiro, por motivos que até o comitê estadual de prevenção do suicídio tem dificuldades de entender. As hipóteses passam pela cultura herdada da colonização alemã: “No Sul, saúde mental é vista como besteira, como se a pessoa não quisesse trabalhar”, diz a coordenadora do comitê, Andréia Volkmer.
Os motivos são complexos e múltiplos, mas “a palavra mais perigosa que tem é quando a pessoa diz ‘cansei’, aí tem que correr”, afirma o psiquiatra Ricardo Nogueira, docente da Ulbra (Universidade Luterana do Brasil) e autor de dois livros e de um manual sobre prevenção ao suicídio no estado.
Suicídios no Rio Grande do Sul
O psiquiatra descreve o ato como o ponto final “dos seis Ds”: desesperança, depressão, desemprego, desamor, desamparo e desespero. Prevenir o suicídio é, então, prevenir o sofrimento mental em suas diversas formas. E não são poucas.
O leque de transtornos chega a mais de 300 tipos, segundo a classificação DSM 5, referência internacional criada pela Associação Americana de Psiquiatria. Mas, os mais comuns são ansiedade e depressão, problemas que o Brasil conhece bem, como mostram diferentes pesquisas.
Hoje, porém, esses números já estão longe da realidade. Os efeitos do luto, do medo e do isolamento pela Covid-19 foram explosivos nos últimos dois anos (apesar de o período não ter influenciado de forma significativa nos suicídios, especificamente).
A última pesquisa mais abrangente, da Vital Strategies e da Universidade Federal de Pelotas, mostrou que os que dizem ter sido diagnosticados com depressão subiram de 9,6% antes da pandemia para 13,5% em 2022. A Associação Brasileira de Psiquiatria cita que um quarto da população tem, teve ou terá depressão ao longo da vida.
“Estamos saindo da pandemia de coronavírus e entrando numa pandemia de saúde mental”. No auge da Covid-19, nós íamos atender os pacientes em casa e eles diziam: ‘doutor, pelo amor de Deus, abram os bares, porque aí pelo menos paramos de beber quando eles fecham'”, diz Nogueira.
Enquanto os bares fechavam, o mesmo acontecia com serviços de saúde mental, o que reprimiu a demanda e fez os pacientes em crise aumentarem. No Caps da Restinga, extremo sul de Porto Alegre, por exemplo, os 3 mil atendimentos mensais de dependentes químicos viraram 14 mil, incluindo mais mulheres e pessoas de classe média.
Nos últimos meses, a equipe da unidade da Restinga teve que dar atenção especial à aldeia indígena Van-Ká, da etnia Kaingang, a alguns quilômetros dali. Um de seus líderes, Eli Fidelis, 51 anos, suicidou-se depois de anos em uma depressão profunda.
“Aqui a gente faz nossas festas. Menos velório, que não é para acontecer mais”, diz Nerlei, 38 anos, o caçula dos oito irmãos, indicando um espaço coberto e circular. “Um tempo atrás a gente nem sabia o que era depressão”, afirma outro irmão, o cacique Odirlei, 40 anos.
Eli é um exemplo de uma parcela da população que carrega o triplo da taxa de suicídios brasileira, diretamente relacionada, entre outros fatores, ao alcoolismo. O fenômeno não é generalizado, mas localizado em comunidades e etnias específicas e concentrado nos adolescentes, segundo o Ministério da Saúde.
Policiais e comunidade LGBTQ+
Outros estratos que acendem alertas são policiais e pessoas LGBTQIA+. A chance de um jovem desse segundo grupo ter um transtorno mental é três vezes maior para ansiedade, duas vezes para depressão e cinco vezes para estresse pós-traumático, mostrou um estudo feito em escolas de São Paulo e Porto Alegre em 2019.
Preocupação mundial
Os adolescentes e jovens-adultos em geral são, agora, a maior preocupação no país e no mundo, com índices de mortes autoprovocadas disparando acima da média.
A organização bate na tecla de que o suicídio é prevenível, ou seja, que se pode prevenir, recomendando quatro diretrizes principais aos países: dificultar o acesso aos principais métodos utilizados; qualificar o trabalho da mídia para que neutralize relatos e enfatize histórias de superação; expandir e fortalecer os serviços de saúde mental para identificar casos precoces e trabalhar habilidades socioemocionais nos espaços de ensino.
Além disso: perder o emprego, sofrer discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, sofrer agressões psicológicas ou físicas, diminuir práticas de autocuidado.
Onde procurar ajuda?
Mapa Saúde Mental: Site mapeia diversos tipos de atendimento: www.mapasaudemental.com.br.
CVV (Centro de Valorização da Vida): Voluntários atendem ligações gratuitas 24 horas por dia no número 188: www.cvv.org.br.
*Folha de SP
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