Uma das histórias mais conhecidas da região Amazônica está relacionada ao famoso “golfinho” dos rios, o Boto.

A lenda indígena diz que, nas noites de lua cheia, o boto se transforma num rapaz jovem, belo e elegante. Veste-se todo de branco, usa um grande chapéu para esconder as narinas — que continuam no alto da cabeça, como sinal de sua origem aquática — e aparece em festas populares, especialmente nas celebrações de Santo Antônio, São João e São Pedro. Seu objetivo? Seduzir a moça mais bonita, engravidá-la e, depois, voltar para o rio como se nada tivesse acontecido.

Galanteador nato, o boto é falante, envolvente e irresistível. Age como um verdadeiro conquistador. Mas há um jeito de desmascará-lo: tire-lhe o chapéu. Se no lugar do couro cabeludo houver fendas nasais — como as de um golfinho de água doce —, não há dúvida: é ele, o boto disfarçado.

Dizem ainda que comer a carne do boto é arriscado. Pode enlouquecer a pessoa, deixá-la enfeitiçada para sempre, segundo relatos de quem conhece os mistérios das águas profundas.

Por isso, quando uma moça engravida e o pai desaparece sem deixar rastro, a culpa — ou o consolo — cai sobre ele: “Foi o boto quem fez”.

“Conheci um Boto”

“Ele me fez a mulher mais realizada do mundo e ainda me deixou rica”. Com essas palavras, Raimundinha Pires*, 50 anos, definiu sua paixão por um moço que conheceu em festa de uma cidade do interior do Amazonas.

A mulher conta que tinha 18 anos quando saiu para a beira do rio, com o intuito de lavar roupas e passou a tarde toda retirando água em um balde com uma cuia. Foi neste momento em que viu, ao longe, algo “rosado” na beira d’água e foi verificar.

Ao chegar mais perto, percebeu que se tratava de um boto ferido, parecendo estar enrolado em uma espécie de rede.

Apesar do medo, Raimundinha conta que fez o que qualquer pessoa com coração faria.

“Fui tirar aquele negócio de cima dele. Os olhos do animal expressavam um sofrimento imenso, como se pedissem: ‘Raimunda, pelo amor de Deus, me salva! Quero ser livre’. Tirei toda a tarrafa de cima dele. Achei que fosse me agredir, sei lá. Mas, estranhamente, ele não foi embora. Ficou nadando, colocava a cabeça fora d’água e se sacodia todo”, afirma.

“Sete dias, sete luas, sete da noite”: o dia em que Raimundinha amou um boto

“Ele me fez a mulher mais realizada do mundo. E ainda me deixou rica.”

É assim que Raimundinha Pires, hoje com 50 anos, resume o encontro que mudou sua vida. Foi numa festa de interior no Amazonas que ela conheceu aquele moço misterioso, elegante, com um terno branco impecável e um olhar verde de hipnotizar peixe-boi. Mas o que parecia um caso de amor banal virou lenda viva: ela jura que amou um boto. E saiu milionária da história.

O início: roupa suja, tarrafa e olhos de gratidão

Raimundinha tinha apenas 18 anos quando saiu para a beira do rio lavar roupas com uma cuia e um balde. Lá, avistou algo “rosado” preso entre galhos e espuma. Era um boto, enrolado numa tarrafa.

Mesmo assustada, ela agiu com compaixão:

“Os olhos dele pareciam pedir socorro. Como se dissessem: ‘Raimunda, pelo amor de Deus, me salva! Quero ser livre.’”

Libertou o animal, esperando que ele fugisse. Mas o boto ficou. Nadava em círculos, espirrava água e balançava a cabeça como quem agradece.

O reencontro

O boto falou. E marcou encontro.

Dias depois, Raimundinha conta que viveu o momento mais surreal da vida:

“Podem rir, mas ele falou. Abriu a boca e disse: ‘Muito obrigado por me salvar, meu amor.’ Uma voz grave, de homem. Eu só consegui dizer: ‘De nada’.”

Então veio a promessa:
“Sete dias, sete luas, às sete da noite, nos veremos de novo.”

Apelidada de louca, chamada de mentirosa

Ao chegar em casa, contou tudo à mãe.
Apanhou.
Chamaram-na de mentirosa, de perturbada. Nem os amigos acreditaram. Mas Raimundinha guardou o segredo do reencontro.

O homem da festa de São João

No sétimo dia, durante a festa de São João, ela chegou às 19h, com vestido novo e a alma inquieta. Foi ali que ele apareceu.

“Um homem lindo! Moreno alto, olhos verdes, terno branco, anel de ouro no mindinho, bengala brilhando. Se apresentou como Rafael D’el Mar.”

Conversaram, dançaram, e logo ele a convidou para um quartinho. Pagou a hospedagem com uma pepita de ouro. Raimundinha topou.

“Foi minha primeira vez. Me senti completa.”

A revelação e a fuga para o rio

Na manhã seguinte, ao agradecer, ele respondeu:
“Eu disse que às sete horas te agradeceria.”
Foi quando ela entendeu. Tocou a cabeça dele.

“Senti as narinas no alto. Era ele. O boto. Meu Deus do céu. Só me restou virar mais uma pinga e engolir a realidade.”

Antes de sumir, Rafael pediu papel, rabiscou alguns números e disse:
“Jogue na loteria.”
Saltou no rio. E, segundo Raimundinha, dali saíram nadadeiras.


Dinheiro, filhos e a memória do boto

Ela jogou.
Ganhou.

“Na época era cruzeiro. Tirei meus pais da miséria, construí duas vilas de casa, abri distribuidora de bebidas. Hoje vivo de renda.”

Teve quatro filhos, casou e descasou algumas vezes, mas nunca esqueceu.

“Não preciso que acreditem. Eu sei o que vivi. Um dia, quem sabe, ele volta. Gosto de lavar roupa na beira do rio até hoje.”


Nota da Redação:

O nome “Raimundinha Pires” foi alterado a pedido da entrevistada. Parte desta história circula há décadas entre ribeirinhos e foi recontada com base no depoimento da própria protagonista.

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