O risco de fome aumentou ao redor do mundo diante dos impactos econômicos da pandemia de Covid-19, mas a situação se tornou particularmente grave no Brasil: a parcela de brasileiros que não teve dinheiro para alimentar a si ou sua família, durante algum período nos últimos 12 meses, subiu de 30% em 2019 para 36% em 2021, patamar recorde da série histórica iniciada em 2006. É também a primeira vez que o nível de insegurança alimentar no Brasil supera a média mundial (35%).
É o que aponta pesquisa elaborada pelo economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais FGV Social. O estudo foi realizado com base no processamento de dados coletados entre agosto e novembro pelo Gallup World Poll, instituto que aplica questionários padronizados desde 2006 em 160 países e fornece evidências comparáveis em escala global sobre temas como saúde, educação, moradia e qualidade de vida.
Considerando a média de 120 países, a insegurança alimentar aumentou 1,5 ponto percentual no mundo contra 6 pontos percentuais no Brasil, ou seja, o aumento equivale a quatro vezes o registrado na média mundial.
Fome volta a assombrar famílias brasileiras
Neri explica que a situação de insegurança alimentar se agravou nos últimos anos em meio à pandemia, mas o quadro já era dramático desde a crise econômica que provocou recessão entre 2014 e 2019, quando também houve uma escalada da desigualdade de renda.
“São dois capítulos separados, mas que fazem parte do mesmo drama e um agrava o outro. Além da recessão forte, a inflação estava alta no começo desse período, o Banco Central subiu juros e houve uma desigualdade na base por conta do congelamento em termos nominais do Bolsa Família, que ficou por muitos anos sem recomposição do valor. Foi um choque sobre outro choque. E quando isso acontece, o segundo choque tende a atuar sobre as vulnerabilidades”, explica.
O resultado dessa conjuntura é o retorno do Brasil ao Mapa da Fome da ONU em níveis ainda mais alarmantes. O Brasil havia deixado essa condição em 2014, quando a proporção de pessoas em famílias com falta de dinheiro para alimentação era de 17%. Em 2021, porém, atingiu o ponto mais alto da série histórica anual, iniciada em 2006, quando o indicador alcançava 20% dos brasileiros.
Em 2014, o Brasil figurava com níveis de insegurança alimentar inferiores a 75% em uma lista de 141 países pesquisados. Em 2021, porém, atingiu um nível que 52% desses países.
Mulheres, mais pobres e menos escolarizados em pior situação
Os mais pobres sentem mais dificuldade para colocar comida na mesa. A pesquisa mostra que o a insegurança alimentar entre os 20% mais pobres no Brasil saiu de 36% em 2014 para 53% em 2019, chegando a 75% em 2021 – um aumento de 22 pontos percentuais em dois anos. Já os 20% mais ricos experimentaram queda de insegurança alimentar de três pontos percentuais (de 10% em 2019 para 7% em 2021).
Na comparação com a média global de 122 países em 2021, os 20% mais pobres no Brasil registram 27 pontos percentuais a mais de insegurança alimentar, enquanto os 20% mais ricos apresentam 14 pontos percentuais a menos.
“A gente tem entre os 20% mais pobres um nível de insegurança alimentar comparado a alguns países africanos como Zimbábue e Serra Leoa. A África é aqui. E entre os 20% mais ricos, o nível de insegurança alimentar nos aproxima da Suécia. Quando você abre o recorte por renda, você vê que é uma tragédia o que aconteceu na base da distribuição”, destaca Neri.
A dificuldade para garantir alimentação também é maior entre as mulheres. Enquanto houve queda de 27% da insegurança alimentar para 26% entre homens brasileiros entre 2019 e 2021, houve um aumento de 14 pontos percentuais do risco de fome entre as mulheres – de 33% para 47%. Como resultado, a diferença entre gêneros na insegurança alimentar em 2021 estava 6 vezes maior no Brasil do que na média global.
“A pandemia impactou mais as mulheres porque elas fazem jornada dupla e ainda ficaram com os filhos em casa por conta das escolas fechadas, sendo que os filhos ficaram sem a merenda escolar. Vimos no primeiro trimestre a volta das crianças mais novas à escola por conta da vacinação, o que é positivo, mas a subnutrição já deixou uma marca. Estamos falando de educação e nutrição, a base do desenvolvimento da pessoa. Isso tem um efeito estrutural e que precisa ser atacado o quanto antes”, disse. Neri.
A desigualdade sobre a insegurança alimentar brasileira também pode ser vista pela ótica da escolaridade. Em 2014, a falta de dinheiro para comprar comida entre os brasileiros com o ensino fundamental chegava a 24%. Em 2019, era 38%. Em 2021, saltou para 52%.
Já entre os brasileiros com ensino médio, a insegurança alimentar passou de 10% em 2014 para 27% em 2019, chegando a 31% em 2021. No ensino superior, por outro lado, houve uma melhora na parcela de brasileiros com algum grau de insegurança alimentar. O percentual caiu de 13% em 2019 para 8% em 2021.
Situação das famílias brasileiras é ainda pior em 2022
O estudo foi realizado durante o período em que o auxílio emergencial foi pago a cerca de 39 milhões de famílias, com valores entre R$ 150 e R$ 375 mensais. Hoje, cerca de 17 milhões de famílias recebem o Auxílio Brasil, antigo Bolsa Família que foi reformulado, no valor de R$ 400 mensais.
Na avaliação de Francisco Menezes, consultor do ActionAid, o cenário deste ano é ainda mais dramático para as famílias brasileiras, sobretudo as mais pobres, dado que a inflação acumula alta de 12,2% em 12 meses, puxada pela disparada dos preços dos alimentos em razão da guerra na Ucrânia e dos choques climáticos.
“Tem um processo de precarização do emprego junto com o empobrecimento, ao passo que a inflação foi aumentando ao longo de 2020 para cá. E isso para as famílias mais pobres significa comer menos ou pior”, aponta.
Menezes, que foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar de 2004 a 2007, lembra ainda que há pelo menos 4 milhões de pessoas cadastradas na fila para receber o Auxílio Brasil, e considera que é preciso uma medida mais urgente para atender a população em situação de fome, hoje estimada entre 25 e 30 milhões de brasileiros.
“É preciso um programa de transferência efetivo que pegue quem está precisando. E vai ser preciso rever os R$ 400 reais que são repassados [no Auxílio Brasil] porque eles já ficaram superados diante da elevação dos preços. O programa nacional de alimentação escolar é outro ponto de atenção já que muitas vezes a merenda pode se tornar a refeição principal dos alunos. Seria preciso uma correção no valor per capita que é repassado pelo FNDE para os municípios para ampliar a capacidade aquisitiva das escolas em prover alimentação escolar, a fim de assegurar uma melhora na qualidade dos alimentos fornecidos”, finaliza.
*O Globo
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