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Mulheres trans e travesti falam dos desafios e vitórias de ser mãe

Hoje as mulheres trans conquistaram espaço inclusive para realizar o sonho de ser mãe

Erika Fernandes e Isis Broken passaram pela experiência após a transição e relatam os momentos especiais da maternidade no primeiro Dia das Mães delas Foto: Arquivo pessoal

Até a metade do século passado, a maternidade era algo exclusivo das mulheres cisgênero e casadas e tudo o que fugia dessa regra não era visto como normal. A revolução e empoderamento das mulheres permitiu que elas vivessem a maternidade solo sem culpas ou amarras com homens. O tempo foi passando e hoje as mulheres trans também conquistaram espaço inclusive para realizar o sonho de ser mãe.

A empreendedora Erika Fernandes, de 28 anos, que mora em Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, conta sempre teve o sonho de ser mãe, antes mesmo de passar pela transição de gênero.

Ela espera pelo primeiro filho, Noah, que deve nascer até o fim de maio, fruto do relacionamento com o empresário Roberto Bete. O casal já planejava há muito tempo gerar uma criança, pararam o tratamento hormonal por um ano e meio para que seus corpos voltassem a funcionar de forma biológica, conforme ela mesma conta.

“Até que aconteceu e ficamos super felizes”, diz. “Sempre sonhei em ter um filho, até pensei em adotar. Depois da transição descobri vários fatos novos, inclusive vi no meu relacionamento transcentrado a possibilidade de ter um filho biológico meu, então embarquei nessa”, relata.

Já a rapper e repentista sergipana travesti Isis Broken, que atualmente mora na capital paulista, não pensava nessa possibilidade. Ela namorava à distância com Lourenzo Lima, conhecido como DJ Aqualien, quando decidiram passar o Carnaval juntos no Nordeste e, nesse meio tempo, o músico ficou sem fazer o tratamento hormonal, mas ambos não tinham medo de uma gravidez porque ele já se harmonizava há mais de três anos.

“A gente não imaginava que existisse essa possibilidade porque o hormônio tira a capacidade reprodutiva. Achamos que estávamos seguros porque ele não estava menstruando”, lembra ela.

“Três meses depois que ele estava lá em Sergipe, Aqualien menstruou e ficamos assustados. Fizemos dois testes de farmácia que deram negativo. Ficamos tranquilos, mas ele começou a entender algumas modificações no corpo e decidiu fazer um novo teste que deu positivo. Ele chegou superpálido até mim e mostrou o resultado. Fiquei assustada. A gente não planejava, foi tudo por acaso”, narra.

O papai Aqualien, o bebê Apolo e a mamãe Isis Broken (Foto: Arquivo pessoal)

Hoje, Isis consegue até se divertir com a situação de pânico que passaram, mas naquele momento ela só tinha um pensamento: “Como falaria para a mãe e o pai”.

“Acho que eu fiquei ainda uns dois dias tentando processar, mas minha mãe ficou nas nuvens e foi um momento de muita felicidade. O primeiro impacto não foi positivo. Eu só pensava que não tinha estrutura nenhuma para criar uma criança”, disse.

A transparentalidade, assim como a homoparentalidade, é uma palavra ainda pouco conhecida do vocabulário popular e significa a possibilidade de pessoas trans de formarem uma família com filhos, o que é um direito garantido pela Constituição Brasileira.

A cantora Yuna Vitória, formada em direito pela Univerdade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisadora em Estudos Trans e Travesti pelo Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades, falou sobre esse assunto durante Seminário da Visibilidade Trans, em 2020. Ela ressaltou que é importante nomear esse tipo de relação específica porque, quando não se nomeia, a sociedade não dá visibilidade e não pensa políticas para ela.

“No campo do direito, por exemplo, nós estamos construindo novas parentalidades entre pessoas trans, encontrando uma série de dificuldades, a exemplo de conseguir registrar o filho, já que os cartórios não estão preparados para entender a situação”, comentou ela.

Erika tenta levar conhecimento para as pessoas mostrando um pouco do dia a dia do casal para as redes sociais e reforça que a transfobia encontrada ali está relacionada à ignorância, à falta de saber, de conhecer.

Ela diz que, muitas vezes, é mais cômodo para as pessoas cisgênero apenas julgar e apontar do que compreender aquela situação. A empreendedora lembra que já recebeu muitos comentários maldosos na internet enquanto mostrava seu processo maternal junto ao marido.

“O julgamento vem de todos os lados. Já falaram que meu filho vai precisar de psicólogo para nos entender, porém se um dia ele precisar vai ser para entender essa sociedade que vivemos sem amor ao próximo. Tenho certeza que seremos capazes de amadurecer nosso filho para isso. Estaremos aqui sempre para amá-lo e acolhê-lo quando precisar.”

Erika Fernandes aguarda com ansiedade pela chegada do filho ao lado do marido, Roberto Bete Foto: Arquivo pessoal

Enquanto ela se prepara para viver este momento, Isis já conhece a realidade bem de perto. Ela opina que a sociedade sempre foi transfóbica, racista e classista, então não se vê no lugar da mulher que vive baseada nos comentários maldosos. 

“Recebo comentários negativos todos os dias, inclusive essa semana até fiz uma denúncia nos meus Stories, no Instagram. É sempre aquele mesmo discurso: ‘Homem é homem, mulher é mulher’. Em que momento eu falei o contrário? Eu sou uma mulher. Já recebi mensagens dizendo ‘coitada dessa criança que vai nascer e crescer nesse lar’. Eu tive um lar totalmente estruturado, com muito amor e carinho da minha mãe e do meu pai. Acho que essas pessoas não tiveram o mesmo na infância e querem chamar atenção. Eles crescem e vivem a vida alheia. Não posso ficar chateada com essas pessoas porque elas têm uma vida vazia, medíocre, baixa e rasa, diferente da minha”, ressalta.

As duas têm uma escolha em comum: deixar que seus filhos vivam uma vida muito diferente das crianças de agora, com mais liberdade para escolherem qual caminho devem seguir e para serem quem desejarem desde a mais tenra infância. Erika reforça que estará sempre ao lado de Noah para apoiá-lo em todas as suas escolhas.

“Com as minhas vivências irei torná-lo um homem que respeita as diferenças das pessoas, um homem zero machista, que respeita as mulheres e suas lutas, um homem que vai à luta para a inclusão de todos.”

“Ter uma travesti no seu convívio é algo que modifica, não só você, mas toda uma estrutura em volta daquele ser, do lugar social. O Apolo vai aprender a respeitar muito mais as mulheridades porque, aprendendo a respeitar uma travesti, ele vai aprender a respeitar uma mulher cis e qualquer tipo de mulheridades, vai ter acesso à avó dele, que é uma mulher cis, nordestina, vai ter acesso a mim, que sou mamãe travesti, à priminha dele vai entender as mulheridades muito mais do que outras crianças no ciclo social dele”, completa Isis.

A artista ainda destaca que o filho, que está com seis meses, terá seu processo da própria descoberta de sexualidade, gênero e identidade, assim como os pais tiveram. Ela acredita que essa geração trará um futuro diferente para Apolo e Noah, mais moderna, atual e com padrões culturais e sociais mais avançados.

“Não sei como vai ser o futuro, mas sinto que será um pouco mais aberto, livre. Ele vai brincar, se relacionar, usar a roupa e ter o cabelo que quiser. Tudo sem impor esses padrões, sem determinações de cores, sem estereótipos tão fortes. É isso que a gente tenta”, pontua ela.

Aqualien e Isis Broken formam uma família transcentrada e têm um filho, Apolo Foto: Arquivo pessoal

*iG

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