Manaus (AM) – Por meio da Lei de Cotas (Lei 12.711, de 2012), conhecida como reserva de vagas para pessoas negras e indígenas, cerca de 16 mil estudantes conseguiram ter acesso ao ensino superior pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Mas, não é somente essas populações que podem integrar a universidade. Pardos, amarelos, pessoas com deficiência e estudantes de baixa renda têm direito às vagas por lei.
Pelo sistema de cotas, os estudantes brasileiros, ao ingressarem na universidade, quebram o histórico longo que muitas famílias enfrentam há muito tempo: o acesso limitado à educação.
O valor da cor
Por mais que haja lei para combater o racismo, o Brasil ainda é um país racista. Sendo assim, a cor ou raça de uma pessoa passou a ter valor social, no qual o elemento branco recebe as vantagens e privilégios disponíveis no contexto daquela sociedade, enquanto as demais lidam com as consequências de serem não brancas, como o racismo.
A professora da Faculdade de Psicologia da Ufam (Fapsi), Iolete Ribeiro, destaca que pela cor e classe social, as pessoas ainda estabelecem lugares limitados a outros do que podem ou não fazer, fazendo assim, a discriminação social.
“Independente da classe social, quando você tem os traços negróides, independente da tonalidade da pele porque tem pessoas negras com peles mais retintas ou mais claras, você vai sofrer os efeitos do racismo, que é esse de enxergar o lugar da pessoa como um lugar de subalternidade”,
afirma a professora.
Dez anos da Lei de Cotas
Em 2022, a Lei de Cotas completa dez anos desde quando entrou em vigor e desde então, as universidades federais, principais instituições de ensino superior do país e um dos nichos da população branca historicamente, passaram a destinar um percentual de vagas aos grupos cobertos pela Lei de Cotas, chegando a 50% de seus ingressantes anuais, conforme estabelece a Lei.
De acordo com a Pró-Reitoria de Ensino de Graduação, a partir de 2016, a Universidade Federal do Amazonas (Ufam) pratica plenamente o ordenamento jurídico, com metade de suas vagas voltadas para o público cotista. Desta forma, instituição já recebeu 16.823 novos universitários pretos, pardos, indígenas e deficientes de 2012 a 2021. Destes, 12.744 são dos cursos de Manaus e 4.079, dos ministrados nos campi da Ufam fora da sede.
Dados
Segundo o Censo da Educação Superior – 2019, a maior parte das matrículas no ensino superior brasileiro – 42,6% – foi feita por pessoas brancas, mas o percentual formado por pessoas pretas, pardas e indígenas atingiu 38,9% do total (31,1% pardas, 7,1% pretas e 0,7% indígenas). Outros 16,8% não declararam cor ou raça e 1,7% eram amarelos.
São dados que indicam uma pequena, mas significativa mudança na sociedade brasileira. Uma parcela da população que – apesar de constituir a maioria do povo brasileiro – não tinha acesso aos redutos de poder decisório e que agora vê a possibilidade de ocupar esses espaços.
A criação da Lei de Cotas, que altera o cenário educacional do país, foi um movimento estratégico com o intuito de provocar a mudança de estrutura de pensamento, de possibilidades de ocupabilidade e de consciência de pertencimento à sociedade brasileira, de acordo com a professora Marilene Corrêa.
“A Lei foi bem-sucedida em todos os aspectos; qualquer crítica em relação a este sucesso pode-se enquadrar nas distintas manifestações do racismo estrutural; foi um sucesso como política afirmativa, como quebra de continuidade geracional de grupos sociais impedidos pela desigualdade de ter acesso à educação superior pública. Pode ser o início de várias medidas de reparação histórica e de combate às disparidades econômicas e socioculturais e até regionais”,
avalia a docente.
Histórias reescritas
A estudante do 8° período do curso de licenciatura em Química do Instituto de Ciências Exatas (ICE), Aline Samara de Jesus, de 23 anos, é a primeira pessoa da família a ingressar na universidade. Natural do Pará, ela ingressou na Ufam pelo Processo Seletivo Contínuo (Sisu), na modalidade de cotas para oriundos de escolas públicas que se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas, com renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 salários mínimos per capita.
“Meus avós, meus pais e meus irmão só têm o ensino fundamental, e outros o ensino médio incompleto. Quando entrei na Ufam em 2018, por meio de cota PPI1, todo esse processo teve muito impacto na minha vida, posso dizer sou outra pessoa hoje, a menina de 10 anos atrás, filha de pais pescadores, jamais imaginaria estar em uma das universidades mais importantes de Brasil, me graduando, fazendo pesquisa, extensão, tendo acesso à informação, à educação de qualidade”,
disse a universitária.
Ao ser questionada sobre se sofreu algum tipo de discriminação na Ufam por ser cotista, Aline declarou:
“Não, como o meu curso não é um curso de “elite”, não houve discriminação, mas senti muita dificuldade em diversos momentos em que percebia que tinha colegas que tinham estudado em colégios particulares, em escolas militares, e que já haviam estudado conteúdos que eu nunca tinha ouvido falar na minha vida toda”.
relatou.
David Conceição Feroldi, de 25 anos, é graduado em Psicologia pela Ufam. Assim como Aline, ele também ingressou por cotas em 2016, mas pelo Sisu. Também é o primeiro da família a conquistar um diploma de ensino superior em uma universidade federal. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Ufam).
“Sou amazonense do interior, da cidade de Apuí. Sempre estudei em escola pública e destaco que só pude vislumbrar o ingresso na universidade quando ainda no ensino médio soube da possibilidade de cotas para pessoas de baixa renda, o que me motivou a buscar pela vaga ainda mais e sonhar com essa conquista”,
conta.
O mestrando lembra que passou por outras situações difíceis enquanto universitário. Conseguir permanecer e concluir o curso não foi uma tarefa fácil.
“Então, do meu ponto de vista, considero a Lei de Cotas extremamente importante para o nosso país porque, muitas vezes, é somente a partir dessa política pública que muitas pessoas, especialmente alunos de escolas públicas do interior do estado, poderão sonhar e realizar o sonho de ingressar nesse espaço de conhecimento e modificar seu contexto e sua realidade social”, opina.
A revisão da Lei
Como está previsto no texto sancionado, a Lei de Cotas deve ser revisada com 10 anos de vigência. Segundo especialistas, o processo é comum em leis que tratam de políticas públicas e não significa a perda da aplicabilidade da lei, mas que os seus efeitos precisam ser avaliados para que correções possam ser feitas.
“A Lei de Cotas precisa continuar em vigor e deve ser ampliada para garantir mais espaços de inclusão. Também deveria ser alvo de debate nesse momento, a construção de políticas institucionais de permanência de estudantes cotistas. Não basta garantir a entrada, é preciso que eles e elas possam permanecer na Universidade para concluir seus cursos”,
aponta a professora Patrícia Sampaio.
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