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Economia

Mercado legal de maconha movimenta R$ 130 milhões no Brasil

Pesquisa aponta que Brasil tem potencial de criar 328 mil empregos formais e informais caso haja uma regulamentação da planta. Em quatro anos, o setor geraria R$ 26,1 bilhões à economia do país

A cannabis sativa, a popular maconha, vive um momento singular após décadas de total proibição no Brasil.

Por um lado, cada vez mais decisões judiciais têm liberado seu cultivo e consumo medicinal, proporcionando tratamento para diversas doenças e aquecendo um mercado que já movimenta R$ 130 milhões por ano.

Por outro, muitos brasileiros são detidos, processados e condenados por serem pegos com ínfimas quantidades da planta, como um ex-militar preso com 0,3 grama e agora pode ser sentenciado a cinco anos de cadeia.

Hoje, por volta de mil pessoas possuem habeas corpus preventivo que permitem o cultivo e o consumo da cannabis para tratar doenças como autismo, epilepsia, Alzheimer, fibromialgia, depressão, ansiedade e enxaqueca crônica.

Além de 5.500 médicos que prescrevem a planta no país, há algumas associações de pacientes com permissão para fornecer medicamentos para seus associados — a maior delas, a Abrace Esperança, da Paraíba, tem 28 mil inscritos.

Já a Anvisa autoriza a importação e comercialização de 18 produtos à base de cannabis, todos vendidos em farmácias.

Esse precedente fez florescer o mercado legalizado nos últimos anos: médicos, farmacêuticas, start-ups, sites especializados, consultorias, aceleradoras de empresas, agências de emprego e fundos de investimentos de grandes bancos colocam e ganham dinheiro no setor.

Já a venda da planta para uso recreativo se enquadra no crime de tráfico de drogas.

Crescimento do setor

Não existem dados oficiais sobre a quantidade média de maconha (ou de outras drogas) utilizada pela Justiça para condenações por tráfico Foto: Getty Images

Um estudo da Kaya Mind, consultoria que há um ano e meio produz dados sobre o mercado canábico brasileiro, estima que apenas o setor de medicamentos gerou R$ 130 milhões em 2021 – alta de 124% no ano passado.

Segundo a pesquisa, o valor é subdimensionado, pois considera só medicamentos auditados pela Anvisa, o que representa uma pequena parte dos produtos vendidos em território nacional.

A consultoria também aponta que o Brasil tem potencial de criar 328 mil empregos formais e informais caso haja uma regulamentação que inclua o uso medicinal, industrial e adulto (recreativo) da planta. Em quatro anos, o setor geraria R$ 26,1 bilhões à economia do país, estima a empresa.

“A gente costuma dizer que a maconha hoje vive um momento esquizofrênico. Como pode existir um mercado legal com produtos vendidos na farmácia ao mesmo tempo em milhares de pessoas ainda são encarceradas por causa da mesma planta? Do lado do uso adulto, existe um enorme mercado legal, que gera renda e empregos, mas o principal produto é proibido”, diz Maria Eugenia Riscala, CEO da Kaya Mind.

Para o médico William Dib, ex-presidente da Anvisa e que participou da decisão do órgão de flexibilizar o uso medicinal em 2019, a recente liberação criou um cenário em que pessoas com dinheiro para pagar advogados conseguem autorização judicial para consumir a planta enquanto os mais pobres ainda enfrentam problemas com a Justiça.

“A gente vive em um país contraditório, e a situação da cannabis mostra isso. Quem tem condição procura judicializar, e isso é um direito garantido pela Constituição. Quantas pessoas no Brasil conseguem fazer isso? Quantas conseguem comprar o remédio de cannabis vendido na farmácia? Muito poucas. E isso tem um custo muito alto para as pessoas e para o Brasil.”

“Farelo” de maconha

Um recente caso ilustra esse cenário de proibição: um ex-soldado da Força Aérea Brasileira (FAB) pode ser condenado a cinco anos de prisão após ter sido pego com 0,3 grama de maconha no quartel.

Segundo a denúncia do Ministério Público Militar (MPM), a posse da droga “gera efeito negativo no moral e na autoestima da corporação, bem como no próprio conceito social das Forças Armadas.”

O caso aconteceu no ano passado, quando João (nome fictício), de 21 anos, deixava o quartel em uma cidade da região Sul.

“Eles usaram cães farejadores e balançaram minha mochila. Caiu um pouco de maconha, mas era farelo. Não dava para fumar”, diz.

O ex-militar foi preso por ‘farelo’ de cannabis, cerca de 0,3 grama da droga Foto: Divulgação

Segundo relatórios de órgãos de saúde e do Ministério Público, um cigarro de maconha costuma ter entre 0,5 e 1,5 grama no Brasil.

João conta que usava cannabis para melhorar sua ansiedade e depressão crônicas. Nos últimos anos, a Justiça já deu decisões liberando o plantio por pessoas que sofrem com essas condições, mas o ex-militar não tinha essa autorização. Se ele tivesse uma receita médica e entrasse com um pedido de habeas corpus, é possível que a Justiça o autorizasse a plantar ou até importar flores de cannabis, como tem feito recentemente com alguns pacientes.

“Na época eu tinha até dado um tempo. Mas sobrou o farelo na mochila, eu nem sabia que estava lá”.

Preso em flagrante, ele ficou em uma cela por algumas horas. Quando voltou ao trabalho, diz, passou a ser evitado por colegas e superiores.

“Nunca fumei no trabalho, sempre me dediquei muito à FAB. Mas fui totalmente excluído. Meus amigos passaram a me evitar para não serem vistos com um ‘maconheiro’. Essa situação mexeu muito comigo, mexeu com minha cabeça.”

Ele ainda ficou alguns meses na FAB, mas deixou o posto no final do ano. O processo, porém, continuou e o jovem pode ser condenado de um a cinco anos de prisão.

“Minha depressão piorou muito depois desse episódio. Fiquei meses sem conseguir sair de casa, sem falar com ninguém, desenvolvi alopecia e perdi todos os pelos da sobrancelha. Só estou conseguindo me recuperar agora”, conta.

João foi enquadrado no artigo 290 do Decreto Lei nº 1.001, de outubro de 1969. O código – da época da ditadura – determina que qualquer militar pego com drogas nas instalações pode ser condenado de um a cinco anos de prisão. Inicialmente, um juiz de primeira instância decidiu não processar o jovem. Mas a promotoria recorreu, e a denúncia foi aceita pelo Superior Tribunal Militar (STM).

O que é tráfico?

Fora do âmbito militar, muitos brasileiros são processados por tráfico de drogas após serem pegos com pequenas quantidades de maconha – e isso acontece com outras substâncias também, como crack e cocaína.

Em alguns países, como o Reino Unido, usuários e pequenos traficantes não são punidos criminalmente porque se entende que esse tipo de medida não gera efeito negativo no narcotráfico e ajuda a superlotar as prisões.

No Brasil, o tráfico é caracterizado mais pelas circunstâncias da prisão do que pela quantidade apreendida.

No Brasil, milhares de pacientes usam medicamentos à base de cannabis para tratar doenças, como epilepsia e Parkinson Foto: Getty Images

Em 2006, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Congresso aprovou uma nova Lei de Drogas, que endurecia penas para traficantes (mínima de 5 anos de prisão) e retirava punições a usuários. A Lei cita 18 verbos que definem o crime: importar, remeter, preparar, produzir, vender, expor à venda, oferecer, ministrar, entre outros.

Segundo especialistas em direito penal, a legislação não define critérios objetivos para diferenciar tráfico de uso pessoal, como a quantidade portada. Na prática, esse problema fez com que a principal prova para condenar alguém por tráfico seja o testemunho dos policiais que participaram do flagrante.

Não existem dados oficiais sobre a quantidade média de maconha (ou de outras drogas) utilizada pela Justiça para condenações por tráfico. Há apenas pesquisas de amostragem: um estudo do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro, por exemplo, apontou que, em 2014, o volume de maconha apreendido não passou de seis gramas em 50% das 24.037 prisões em flagrante analisadas. Em 75% dos casos, o peso máximo de cannabis apreendida não passava de 42,6 gramas.

“A aplicação da Lei é errática e nebulosa. Conta muito o local da prisão e a classe econômica da pessoa. Se ela for de classe média alta, morador do Leblon (bairro nobre do Rio), a polícia e a Justiça muito provavelmente vão considerá-la usuária”, diz Emilio Figueiredo, advogado da Rede Reforma, grupo que atua em processos de habeas corpus preventivos para plantio. “Mas se ela for negra, presa em uma favela, será condenada porque se pressupõe que ali é um local de tráfico, logo, ela é uma traficante.”

Um recente caso, que chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), ilustra esse cenário. Um vendedor de frutas foi detido em flagrante com 24 gramas de maconha ao lado de uma rodoviária em Sergipe – acabou condenado na primeira instância a oito anos de prisão em regime fechado.

Encarceramento em massa

Lei de drogas ajudou a acelerar encarceramento no Brasil, segundo especialistas Foto: THINKSTOCK

A Lei de drogas de 2006 é apontada por defensores e especialistas em direito penal como um acelerador do encarceramento no Brasil.

Em 2005, antes da legislação, 14% dos presos foram condenados por crimes relacionados ao tráfico, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Infopen. Já em 2019, o delito representava 27,4% – entre as mulheres, esse índice chega a 54,9% do total.

Para Gustavo de Almeida Ribeiro, defensor público federal com atuação no STF, a legislação sobre drogas no Brasil é “uma máquina de moer pessoas”, principalmente jovens, pobres e negros.

“Pequenas quantidades de substâncias ilícitas geram penas muito elevadas. Como o Brasil tem muita dificuldade de investigar os crimes, a Justiça usa elementos que não dizem muita coisa. Se a droga for encontrada em porções, por exemplo, isso vira um argumento para a condenação, porque pressupõe-se de que isso tem relação com o tráfico. Se ela for presa perto de uma escola, a pena aumenta, mas não existe um parâmetro de distância que deve ser considerada. A lei de drogas é muito aberta e pouco objetiva, tudo pesa contra o acusado”, aponta.

*Com informações da BBC Brasil

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